Orçamento do Estado e estado de negação

Costa é bem mais brilhante a criticar os outros – essa é, aliás, uma pecha comum a quase todos os oradores políticos – do que a revelar chama na mobilização de vontades próprias.

Cegueira deliberada ou incapacidade de ver? Um estado mistura-se com o outro num comum estado de negação perante o Orçamento do Estado (OE) para 2017. E neste estado encontramos a actual maioria e a oposição quando, perante números e estatísticas que deveriam pressupor alguma objectividade, se verificam conclusões radicalmente antagónicas.

Para uns – a oposição – a culpa dos problemas colocados pelo OE cabe toda ao Governo actual (e seus parceiros) e à estratégia errada ou inexistente que levará o país de novo à bancarrota económica. Para os outros – PS e parceiros – a culpa cabe inteiramente ao Governo anterior PSD/CDS e à sua política austeritária que nos conduziu ao desastre social dos anos da troika. Presente contra passado ou passado contra presente. Mas onde começa exactamente este presente e onde se radica precisamente esse passado?

Uma das coisas instrutivas que se puderam extrair do último debate parlamentar foi que cada qual manipula a verdade em função do que vê ou quer ver, como a discussão bizantina sobre se haverá ou não aumento de impostos. PSD e CDS já avançam, aliás, que o Governo socialista pretende impor uma nova política de austeridade, como se não fosse isso que vivemos desde o fim da era socrática, com o recurso ao resgate externo, e durante o executivo de Passos Coelho e Paulo Portas.

O líder do PSD não se envergonha, aliás, de falar da “injustiça social gritante” representada pela orientação do actual Governo, sendo nisso secundado, em estilo quase arruaceiro, por outros oradores da oposição. Maria Luís Albuquerque, por exemplo, fala das desventuras presentes como se fosse totalmente estranha – ou inimiga de si própria – à política que prosseguiu como sucessora de Vítor Gaspar.

Passos Coelho referiu-se aos tempos de “pós-verdade” em que vivemos – uma referência inspirada porventura pela campanha eleitoral americana e a retórica de Trump mas também por outros sinais vindos da Europa – sem que se reconheça minimamente nesses tempos, antes pelo contrário. Nesse aspecto, António Costa foi incisivo ao retratar o discurso do adversário: “Não falou uma única vez das pessoas. A única pessoa que existe é ele e o fantasma do seu Governo”. Passos Coelho vive efectivamente assombrado por um passado de que não consegue libertar-se e que o manieta a si e ao conjunto da oposição.

Só que Costa é bem mais brilhante a criticar os outros – essa é, aliás, uma pecha comum a quase todos os oradores políticos – do que a revelar chama na mobilização de vontades próprias, como foi o seu relatório de teor burocrático sobre o Plano Nacional de Reformas, repetindo os milagres prometidos pelo ministro do Planeamento, Pedro Marques. E, ao contrário do ministro das Finanças, apesar dos pruridos de linguagem de Centeno, não se atreveu a admitir uma evidência maior enunciada, oportunamente, pela líder do Bloco, Catarina Martins: a de que sem uma reestruturação da dívida ou uma redução significativa dos respectivos juros não haverá reais perspectivas de crescimento económico.

Claro que essa é uma questão que nos ultrapassa, face ao actual equilíbrio de forças na Europa, mas reconhecê-la é da mais elementar honestidade política – e constitui até um argumento a favor das dificuldades enfrentadas pelo Governo no plano externo, onde as anémicas perspectivas de crescimento económico internacional condicionam decisivamente as nossas próprias expectativas (o que nem o PS, os seus apoiantes e muito menos a oposição aceitam interiorizar). A política tem razões que a razão desconhece e será também por isso que vivemos em estado de negação.

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