Dois homens disputam a presidência argentina, Cristina manterá poder na sombra

O que os eleitores argentinos vão escolher nestas eleições presidenciais é se querem a continuidade do kirchernismo, com Daniel Scioli, ou um modelo alternativo, com Mauricio Macri. Mas sabem que o poder da Presidente cessante está instalado na máquina do Estado.

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Cristina Kirchner e o candidato que escolheu como seu sucessor, Daniel Scioli Eitan Abramovich/REUTERS
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Mauricio Macri tenta captar os desiludidos e os indecisos e forçar uma segunda volta Marcos Brindicci/REUTES
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Daniel Scioli, o governador da província de Buenos Aires, é o favorito Marcos Brindicci/REUTERS

Pela primeira vez em 13 anos, os argentinos não votarão num Kirchner numa eleição para a presidência. Mas a escolha deste domingo ainda será entre o projecto político kirchnerista, tal como interpretado por Daniel Scioli, o herdeiro político da Presidente Cristina Fernández de Kirchner, e o modelo alternativo oferecido por Mauricio Macri, o líder da plataforma Mudemos, de centro-direita, e principal candidato da oposição.

Scioli, o governador da província de Buenos Aires, é o favorito, mas os inquéritos mostram que dificilmente ultrapassará a barreira dos 45% (ou, em alternativa, 40% e uma diferença de dez pontos para o segundo mais votado) que garante a eleição à primeira volta. Se a decisão for atirada para uma derradeira votação, a 22 de Novembro, as variáveis políticas e eleitorais alteram-se: a união dos 60% de votos da oposição – que vários comentadores dizem ser tudo menos previsível – poderá abrir um novo capítulo na Argentina.

O teste de sobrevivência do kirchnerismo sem Kirchner não é a única “originalidade” ou facto inédito destas presidenciais. Desde 1983, nunca houve tão poucos candidatos à presidência, seis no total, com a particularidade de todos serem apoiados por coligações ou alianças de partidos e de haver apenas uma mulher entre os finalistas – Margarita Stolbizer, o rosto da oposição de esquerda, em nome dos Progressistas. A grande novidade, no entanto, é a possibilidade real de só haver decisão na segunda volta. É a primeira vez. 

A candidatura de Mauricio Macri está a jogar todas as fichas para captar os desiludidos e os indecisos e forçar o prolongamento da corrida. O seu grande trunfo é o descontentamento generalizado com a situação económica do país: após um longo período de crescimento e progresso social, a Argentina – que entrou em incumprimento em 2014 por causa da pressão dos chamados “fundos-abutre” norte-americanos –, vive em risco iminente de caos financeiro. A economia estagnou em 2013, e a expectativa de um crescimento de 0,5% este ano choca já com a previsão de uma retracção de 1% em 2016.

A população sofre com a elevada taxa de inflação (o valor oficial é de 15%, embora pelos cálculos de economistas independentes esteja em 26%) e o apertado sistema de controlo de capitais e restrições às importações. Porém, as reformas defendidas por Mauricio Macri, que prometeu reabrir o mercado argentino à concorrência internacional e ao investimento estrangeiro, merecem desconfiança a uma população que responsabiliza as políticas neo-liberais da década de 90 pela profunda crise que o país viveu no início do milénio, e que começou a inverter com a chegada de Néstor Kirchner - o falecido marido da Presidente Kirchner - ao poder.

Apesar da insatisfação económica, as sondagens confirmam a popularidade das políticas heterodoxas da Administração Kirchner – e com alguns retoques, esse é o guião que Daniel Scioli se comprometeu a seguir. O candidato favorito concedeu a necessidade de um “ajustamento” gradual no rumo (económico) do país, mas rejeita totalmente os custos sociais inevitáveis com o tratamento de choque defendido pelo seu rival.

A campanha eleitoral, que segundo criticam observadores foi demasiado “tépida” para mobilizar os argentinos, teve algumas surpresas na recta final. Enquanto Daniel Scioli procurou distanciar-se do legado de Cristina Kirchner e contrariar as acusações de que, na Casa Rosada, não passará de um fantoche da actual Presidente, Mauricio Macri fez uma inflexão para o peronismo, chegando até a inaugurar uma estátua do antigo Presidente, que elogiou como “um símbolo de união”.

Para já, a Argentina não dá mostras de querer descartar-se do peronismo, esse extravagante fenómeno político “autóctone”, inventado por Juan Domingo Péron nos anos 40, e capaz de conter dentro de si elementos que vão da extrema-esquerda à extrema-direita. Para os analistas, a campanha de Macri terá procurado beneficiar da boa-vontade que o antigo general ainda suscita aos argentinos, mas o possível sucesso dessa manobra é duvidoso.O campo eleitoral está recheado de peronistas, o mais “competitivo” dos quais é Sergio Massa, o antigo chefe de gabinete de Cristina Kirchner, que rompeu com o Governo e se assumiu como peronista dissidente, e cujos eleitores são disputados tanto por Macri como por Scioli.

“Não sou peronista nem sou anti-kirchnerista”, explicou Macri numa entrevista, em que resumiu o seu desafio a “bater o Governo todo-poderoso”, que “mais de 60% dos eleitores dizem não querer que continue”. O líder do Mudemos arriscou ao recusar a “fusão” da sua candidatura com a de Massa, líder do partido Unidos por Uma Nova Argentina. Essa decisão pode ser duplamente testada: se os 20% de votos no peronista dissidente aumentarem o fosso percentual entre Scioli e a oposição; e num cenário de segunda volta, em que não é claro que Macri consiga evitar a transferência dos eleitores peronistas para a candidatura “governista”.

Cristina não sai de cena
Pelo seu lado, Scioli passou boa parte da campanha a afirmar a sua autonomia e a desmentir que o seu Governo estará apenas a aquecer a cadeira durante quatro anos até ao regresso de Kirchner (constitucionalmente impedida de cumprir três mandatos consecutivos). “Se for eleito, exercerei os meus poderes constitucionais em toda a sua plenitude”, frisou à Reuters. Mas basta um gesto de Cristina para os seus esforços saírem gorados: a Presidente não facilita a vida ao seu candidato quando aparece em palco a dançar efusivamente enquanto ele se mantém petrificado.

Daniel Scioli já antecipou o elenco do seu futuro Executivo, composto por personalidades da sua confiança pessoal, e até enunciou algumas medidas de política económica urgentes, para sossegar os mercados. Mas nem assim o candidato kirchnerista conseguiu sacudir a pressão: a imprensa argentina escreveu longamente sobre o papel da Presidente nas negociações para a composição das listas de candidatos da Frente para a Vitória ao Congresso, que se encarregarão de “vigiar” a actuação de Scioli e “corrigir” qualquer tentativa de desvio da linha populista (e intervencionista) fixada pelos Kirchner.

Conforme assinalam os observadores políticos, nestes derradeiros meses de presidência, Cristina Kirchner tem tomado medidas que asseguram que a sua capacidade de influência, leia-se, o seu poder, se mantém intacta após o fim do mandato. A Presidente recheou a máquina do Estado com os seus aliados – nomeou nove dos 10 directores do banco central; os dirigentes dos órgãos reguladores de telecomunicações e do sistema financeiro; os presidentes das companhias estatais e mais de metade dos juízes e procuradores do país – e aprovou leis ou criou agências, como por exemplo a que resultou na reorganização dos serviços secretos, na sequência da misteriosa morte do procurador Alberto Nisman, que acusara o Governo de encobrir o envolvimento do Irão num atentado contra um instituto judeu em Buenos Aires.

Numa última cartada, a campanha de Mauricio Macri inundou os jornais com denúncias de actos de espionagem ilícita de membros da oposição, e ainda juízes ou jornalistas considerados “incómodos” para o Governo. Para os comentadores, o objectivo é desgastar a imagem do “oficialismo”, que se debateu com inúmeros escândalos de corrupção e autoritarismo, e convocar os indecisos e os anti-kirchneristas às urnas.

 

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