Marco da Silva Ferreira: Da MTV à dança contemporânea com vista lá para fora

Com um percurso peculiar, é um dos jovens criadores da actual dança portuguesa que mais vale a pena seguir. Depois de ter andado lá fora com Hu(r)mano, estreia o novo trabalho, Brother, dia 21 no Rivoli, com passagem por Lisboa em Março.

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NELSON GARRIDO
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Em 2010 foram muitos os portugueses que ligaram o 760 100 205 para escolher Marco da Silva Ferreira como o vencedor da primeira edição nacional do concurso televisivo Achas que Sabes Dançar?. O bailarino de danças urbanas de Santa Maria da Feira – que viu no ano anterior em Los Angeles, ao vivo e a cores, o que era isso do “trabalho de videoclipe ao mais alto nível”, em academias como a Debbie Reynolds Dance Studio, fundada pela recém-falecida actriz de Hollywood, e a Millennium Dance Complex, por onde passaram Michael Jackson, Beyoncé, Missy Elliott ou Justin Timberlake – tinha tudo para escalar no terreno da dança comercial.

Mas em 2017 a história é outra. Marco da Silva Ferreira, que estreia no dia 21 o espectáculo Brother no horário nobre da festa do 85.º aniversário do Teatro Municipal Rivoli, no Porto, é hoje um dos jovens criadores mais entusiasmantes do circuito português de dança contemporânea. E com circulação internacional. Hu(r)mano, a sua primeira criação oficial como coreógrafo, rendeu-lhe uma digressão surpreendentemente intensa (e extensa) nos últimos dois anos – ou como Marco prefere dizer, ainda atordoado, “uma avalanche”.

Em Barcelona participou no Aerowaves, um dos principais festivais dedicados a artistas emergentes. Em Londres esteve no The Place, importante palco da dança contemporânea na Europa. No Rio de Janeiro foi ao Panorama Festival. Em Meylan ganhou o segundo prémio do (re)connaissance, considerada uma das competições mais influentes da área em França. Em Paris marcou presença no Chantiers d’Europe, valioso programa do Théâtre de la Ville. Em Portugal passou por Torres Novas, Porto, Faro, Guimarães, Viseu, Ovar. Em 2017 queimam-se os últimos cartuchos. Macau, Cabo Verde, França, e a primeira vez de Hu(r)mano em Lisboa, a 21 e 22 de Março no São Luiz, a par da apresentação de Brother, nos dias 24 e 25.

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Eestreia dia 21 Brother na festa do 85º aniversário do Teatro Municipal Rivoli, no Porto JoseCaldeira

Pelo menos por agora, vale a pena não o perder de vista.

Encontrar um lugar

Antes de se estabelecer como criador, Marco da Silva Ferreira, 30 anos, deu provas enquanto intérprete em trabalhos de coreógrafos como André Mesquita, que foi dos primeiros a descobri-lo, Sylvia Rijmer, Hofesh Shechter e Victor Hugo Pontes, de quem é cúmplice regular. Contudo, as danças urbanas chegaram primeiro. “Por volta dos 16 anos comecei a desligar-me da natação de competição e procurei outras actividades físicas que não fossem só desportivas. Comecei então a fazer dança informalmente, a par da natação”, conta o coreógrafo. “Na altura o hip-hop, em particular, era um estilo de dança que me atraía. Era algo muito ligado à cultura pop da MTV, e eu cresci com a MTV.”

As coreografias e música de Usher, Madonna, Justin Timberlake ou Michael Jackson eram motor para a imaginação. Aos 17 anos o assunto tornou-se sério. Marco começou a fazer aulas na academia All About Dance, em Santa Maria da Feira, de hip-hop, breakdance, jazz, popping. Viajava para fazer workshops lá fora. Fazia aulas, dava aulas. Passava horas no estúdio, sozinho, a treinar (“dizíamos treinar, não dizíamos ensaiar”). Procurava também “algumas aulas de dança contemporânea e ballet”. Entretanto, a natação ficava para trás. Aos 20 já estava de corpo inteiro na dança.

Em 2009 foi a Los Angeles com Vítor Fontes, responsável pela All About Dance (e um dos bailarinos de Hu(r)mano), para ter um mês intensivo de aulas. Foi mais ou menos como mergulhar de cabeça para dentro da MTV, e não só. “Vim com uma bagagem completamente nova, de vários estilos, mas ainda muito ligada a uma cultura comercial”, diz Marco. Começou a ressacar, a desligar. Concorrer ao Achas que Sabes Dançar?, em 2010, foi o derradeiro acto, com uma crise existencial à mistura.

“Durante o programa havia uma batalha interior à volta do que eu queria fazer depois e o que estava lá a fazer. Não queria ser aquele estereótipo de bailarino televisivo e de personagem televisiva”, recorda o bailarino, que acabou por ganhar o concurso. “Investi boa parte do dinheiro do prémio em formação. Logo a seguir fui uns tempos para Nova Iorque ter aulas, mais fora do universo comercial.”

Quando regressou a Portugal começou a entrar no circuito de performance e dança contemporânea do Porto, enquanto artista freelancer (“gosto dessa liberdade e assim quero continuar”). A Companhia Instável, importante estrutura de apoio, formação e divulgação de jovens criadores e intérpretes, funcionou como “uma casa para experimentar” e como ponto de encontro. “Foi lá que comecei a conhecer outras pessoas que estavam a criar no Porto: Victor Hugo Pontes, Joclécio Azevedo, Susana Otero, Joana Castro, Flávio Rodrigues, Vera Mota ou a Cristina Planas Leitão”, diz o coreógrafo, que nos últimos anos tem feito também trabalhos de assistência coreográfica, como em Hamlet, da mala voadora, e em Carnaval, de Victor Hugo Pontes.

Uma dança de colisão

Em 2012/2013 começou a germinar Hu(r)mano. Conseguiu apoio da DGArtes. A estreia aconteceu em 2014 no Teatro Virgínia, em Torres Novas, na altura sob direcção de Tiago Guedes, que mais tarde, já no papel de director artístico do Teatro Municipal do Porto, voltou a convidar Marco da Silva Ferreira para apresentar a peça no Teatro do Campo Alegre numa versão retrabalhada, no início de 2015.

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Hu(r)mano, a sua primeira criação oficial como coreógrafo, rendeu-lhe uma digressão intensa (e extensa) nos últimos dois anos - “uma avalanche” JoseCaldeira

Hu(r)mano reflecte a formação plural de Marco na dança. Não renega as origens, faz-lhe fintas. Tem o groove, a trepidação e o magnetismo das danças urbanas, que surgem aqui desprogramadas, quase como algo alienígena, em processo de abstracção, de colisão entre a audácia rítmica e a contenção, o prazer e a tensão; um quente e frio. Há uma noção “biológica, fisiológica e motora do corpo” apurada, que o criador diz ter vindo da sua formação em fisioterapia. Marco e os restantes bailarinos – corpos não formatados “num só estilo ou estética” –, deslocalizam e recontextualizam as gramáticas das danças urbanas numa pop esquisita, sem perder a fluidez e a sensação de presente.

“Acho que o meu trabalho é muito da idade que eu tenho, da minha geração, da dança que me chega”, nota o coreógrafo. “Fazer dança contemporânea para teatro com a dança que se cria agora é muito difícil. Existe nas subculturas das cidades, mas ainda não entrou propriamente no teatro”, reflecte. “Às vezes fica a sensação de que os teatros andam atrás do que o presente já contém.”

Brother, a nova criação, continua no presente, mas é “um ponto de fusão entre o ancestral e o contemporâneo urbano”. “Pensei na ideia de passarmos informação uns aos outros e criarmos vocabulário não-verbal com a dança. O que herdamos e damos a herdar, o que mastigamos, o que surge a partir daí”, explica o coreógrafo ao Ípsilon, poucos dias antes de partir para Lyon, onde estará a ultimar Brother em residência, um dos apoios que resultou do prémio do (re)connaissance.

Ainda em 2017, Marco vai entrar no novo trabalho da criadora e actriz Raquel Castro, O Olhar de Milhões, fazer residências de pesquisa lá fora e cá dentro, embarcar em mais um projecto de Victor Hugo Pontes, fazer assistência de encenação e movimento no espectáculo Os Veraneantes, de Nuno Cardoso com o Ao Cabo Teatro (9 a 18 de Março no Teatro Nacional São João). De resto, logo se vê. “Não quero entrar nessa coisa institucional de ter que fazer. Quando não tenho nada para dizer não digo.” Sem futurologia, sem ceder às expectativas de ser ou não ser the next big thing. “O Hu(r)mano teve um boom inesperado mas isso não quer dizer que o Brother também tenha”, avisa.

Marco da Silva Ferreira tem outras preocupações. “Não gosto de cair em coisas que já fiz e que já vi, nem de seguir uma metodologia de criação” (não admira que Íris, performance criada em conjunto com o cineasta Jorge Jácome e estreada em Dezembro, pouco tenha a ver com Hu(r)mano). Não quer fixar uma linguagem, mas admite que há uma frequência no seu trabalho. A dança como sensação. “Não gosto de ver a dança enquanto celebração e virtuosismo, nem enquanto figuração de emoções e histórias”, diz o coreógrafo. “Passa por um desconhecido, por uma sensação de não-significado e de estranheza. A dança que procuro é a de uma tensão ou frustração qualquer que exista no corpo.” O corpo dá a resposta.

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