Mala Voadora traz “o mau quarto” de Hamlet a Lisboa

A Mala Voadora estreia esta quinta-feira, Dia Mundial do Teatro, o seu primeiro Shakespeare. Mas este Hamlet que a companhia de Jorge Andrade e José Capela vai estrear nos 450 anos do autor inglês não é, ou assim parece, o Hamlet que nos habituámos a ver.

Foto
A peça da Mala Voadora José Carlos Duarte

Diz-se que esta é “a primeira edição”, publicada em 1603 e com menos 1600 versos do que as outras versões que se tornaram as mais comuns. À companhia Mala Voadora interessava perceber “o porquê do adiamento da vingança”, explica Jorge Andrade, que encena a peça.

“Não existe um carimbo [de Shakespeare] que diga ‘este é o Hamlet’”, começa por dizer. O que se conhece sim, e a Mala Voadora descobriu através do tradutor Fernando Villas-Boas, são três versões da peça, sendo duas delas mais pequenas – “o quarto 1” (chamado, ‘mau quarto’), o “quarto 2” –, e o “Fólio”, que se apresenta como o mais completo e que corresponde à versão publicada nas obras integrais de Shakespeare, com 20 anos de diferença sobre aquela que será a data de edição do “mau quarto”. Será esta, acredita Jorge Andrade, “a versão mais próxima da real”. 

Quando Hamlet começou a ser apresentado, no início do século XVII, terão existido espectadores que “para fazer dinheiro” reescreviam o que iam ver ao teatro, explica Jorge Andrade. Lembra o tradutor Fernando Villas-Boas que, apesar da ligeireza da poesia, “não sabemos em que grau a escrita de qualquer das peças de Shakespeare que nos chegaram corresponde ao que terá acontecido em palco”. O que sabemos, no entanto, continua, é “que os textos eram constantemente moldados para as ocasiões, como o próprio Hamlet faz em cena, com o espectáculo variado que monta diante da sua corte, num caso escolhendo apenas uma cena e juntando-lhe texto seu – os tais “doze ou dezasseis versos, para a ocasião”. 

É isto que interessa a Jorge Andrade, cujo trabalho de encenação “deu aos actores a liberdade para se adaptarem a cada cena”. Mas alerta: “Não hipotecamos a cena em prol do texto.” O receio de Jorge Andrade era que este condensar da narrativa, normalmente a durar quase cinco horas, mas que aqui se apresenta em menos de duas vertiginosas horas, “tornasse a peça hermética”.

“Uma coisa que me agrada muito no Hamlet é o faz de conta. Agrada-me muito que ele [Shakespeare] faça um teatro onde existe teatro.” E é aqui que esta encenação de um texto que julgávamos conhecer se transforma, com mais ou menos as mesmas palavras, num espectáculo particular. A história que Shakespeare escreveu e que nos chegou conta-nos os planos deste príncipe da Dinamarca que, assaltado pelo fantasma do pai, prepara uma vingança contra o seu tio, Cláudio, e a própria mãe, Gertrudes. Mas o que este "mau quarto" nos oferece é uma primeira versão, como diz o tradutor Fernando Villas-Boas, “bastante mais ligeira” mas não com menos força.

A começar pela cenografia, como sempre assinada por José Capela. Com cinco telões de diferentes tamanhos é criada a ilusão de um teatro dentro do teatro e brinca-se com as perspectivas. Para a companhia essa é uma forma de prolongar o seu fascínio pelo artifício. São eles que o explicam: “Somos uma companhia de teatro fascinada com o artifício – a contranaturalidade que define aquilo que é especificamente humano e que pode atingir a condição daquilo a que, artificiosamente, se chama ‘arte’.”

Do elenco de dez actores – Anabela Almeida, Carla Bolito, Carlos António, David Cabecinha, David Pereira Bastos, João Vicente, Jorge Andrade, João Villas-Boas, Manuel Moreira e Marco Paiva – cinco desdobram-se em mais do que uma personagem e a estes “camaleões”, como lhes chama Jorge Andrade, é dada a tarefa de não nos mentirem. 


O encenador saberá o que isso é, já que em 2007 fora Rosenkrantz, um dos amigos de Hamlet e soldado do seu pai, Horácio, na encenação que João Mota estreou no Teatro Maria Matos. Hoje, no papel de encenador, Jorge Andrade ainda está a tentar “descobrir as semelhanças entre o Hamlet encenador e Jorge o encenador”.

Ao encenar o assassinato do seu pai, Hamlet constrói “uma verdade a partir da imaginação” e produz “uma encenação dentro da [sua] encenação”. Ao encenar Hamlet, Jorge Andrade aposta numa interacção com os espectadores, convidando-os a reflectir sobre o que ainda nos possa dizer uma encenação de um texto que achamos saber de cor.  
Hamlet está em cena no Teatro São Luiz, em Lisboa, até domingo 30 de Março.

Sugerir correcção
Comentar