Como aquecer o Natal sem acordar o menino

Com excelentes intérpretes a fazer música antiga há 10 anos, o Ludovice Ensemble levou ao Centro Cultural de Belém um interessante programa barroco, com obras natalícias de Charpentier a Bach.

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O Ludovice Ensemble DR

Atenção, que vem aí o Natal. Luzes avermelhadas e velas em palco - para aquecer os olhos -, e o coro entra silencioso de surpresa pela plateia durante os primeiros excertos instrumentais, com velas na mão, daquelas que tremeluzem a fingir. São dois pequenos momentos de In Nativitatem Domini Canticum, a propósito do nascimento de Jesus, e que abriram o concerto. Devagar, para não acordar o menino...

A música de Charpentier seguiu depois, com o texto da Messe de Minuit pour Noël - trata-se da "Missa do Galo", a missa da meia-noite de Natal. Curiosa missa, que cruza momentos de escrita complexa e de música "culta" com canções populares da quadra (os "Noëls"). O Ludovice Ensemble (já são 10 anos a fazer boa música antiga...) conseguiu transmitir bem esse carácter misto de uma obra que, usando o texto tradicional da missa, se baseia em canções ligeiras que conseguem tocar-nos pela extrema simplicidade. Imagina-se o "todo-poderoso" da missa a ser cantado como uma canção infantil? Se as peças de carácter pastoral são recorrentes no barroco, elas são aqui, no estilo "italiano" de Charpentier, de uma admirável leveza. Opção discutível do director musical foi pedir aos cantores a dicção "à francesa" do texto em latim, que parece um preciosismo escusado. Mas se fosse para fazer, então parece óbvio que devem fazê-lo todos os cantores coerentemente.

Seguiu-se, ainda na primeira parte deste longo programa de Natal antecipado, o muito interessante moteto Quam dilecta tabernacula tua Domine, de Rameau, em que puderam brilhar os solistas Joana Seara (soprano), Pascal Bertin (um contralto masculino), Fernando Guimarães (tenor) e Hugo Oliveira (barítono). Com Rameau o concerto avivou e a comunicação com a plateia que tardou a surgir com o Charpentier fez-se agora mais claramente, subindo a temperatura.

O Grande Auditório do CCB é um pouco alto e frio, apesar da acústica aguentar perfeitamente um concerto deste tipo (isto é, de música antiga, com uma orquestra reduzida) e apesar das velas e luzes vermelhas para tentar aquecer visualmente o ambiente. Mas se o movimento da música não estabelece uma relação mais quente com os espectadores, então não há luz que nos valha. Não vivemos na Austrália: o Natal aqui tem de ser bem aquecido...

A segunda parte começou musicalmente irrepreensível, com um concerto para duas flautas de Telemann excelentemente tocado por Joana Amorim e Sachiyo Hayashi. Saboroso, este doirado docinho pastoral extra, mas não seria um pouco metido a martelo no programa? Seguiu-se, para concluir, a Missa em Lá maior de Bach, cuja mestria já não é preciso sublinhar. Mas o que é incrível em Bach é que se descobrem sempre coisas novas, dentro de um mesmo método, uma mesma linguagem, uma mesma devoção constante à música, que para Bach era sinónimo do seu "trabalho para Deus". E novas coisas surgiram aqui também, nesta última missa muito bem dirigida por Fernando Miguel Jalôto, com algumas espectaculares intervenções dos cantores e dos excelentes músicos do Ludovice Ensemble, solistas e não só! Finalmente, a sala aqueceu toda e ficou quentinho o Natal antecipado: é que havia pés que tinham ficado ainda frios.

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