Um vídeojogo não vale um Vale Abraão

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A dimensão simbólica de um filme como Vale Abraão, ou de qualquer outra obra de arte, escapa a relatórios como este, que reduzem o artista ao papel de angariador

obre os equívocos do relatório A cultura e a criatividade na internacionalização da economia portuguesa.

“A solução está nas exportações.” A fórmula tem sido propagandeada como panaceia para o crescimento dos países, em particular daqueles fragilizados pelas recentes políticas económicas. Vejamos como esta fórmula, sujeita ao mais simples exercício de lógica, é inexplicável: para crescerem, os países devem exportar o máximo e simultaneamente importar o mínimo. Contudo, se todos quiserem exportar o máximo e importar o mínimo, quais estarão dispostos a ser apenas compradores, importadores? E até que eternidade?

Ou não há resposta para isto, ou a resposta para isto é tão brutal que se omite. Porém, os defensores da máxima são habilidosos: os condenados à condição de eternos compradores estão condenados a ir adiando, a ir empurrando o pagamento da sua dívida para o futuro, enquanto os outros, os que a todo o custo querem exportar — e que tantas vezes não têm recursos naturais —, reduzem o custo de produção baixando o valor da hora de trabalho, que por sua vez diminui a capacidade individual de compra ou importação. É assim que vai sempre aumentado a diferença entre exportação e importação, exportadores e importadores, vendedores e compradores.

“A solução está nas exportações” é uma receita globalizada e abarca todas as dimensões da vida produtiva, porém utiliza uma outra terminologia, porventura mais apelativa do que a velha palavra “exportação”: a internacionalização. De Augusto Mateus e Associados, o relatório A cultura e a criatividade na internacionalização da economia portuguesa (2013) exemplifica este paradoxo. Elaborado com toda a coerência no que diz respeito a uma economia globalizada que tem por base uma relação directa entre consumo e crescimento, o relatório actualiza alguns dados de um outro trabalho do mesmo autor, publicado em 2010, dados esse nem sempre fiáveis, como o próprio o diz (recorrendo aos critérios da CNUCED, o organismo das Nações Unidas para o comércio e o desenvolvimento, Portugal é o 16.º exportador mundial de escultura, que lhe terá rendido 67 milhões de dólares em 2011. Estamos a falar de quê?)

Tal como em 2010, Mateus acautela o excesso de expectativas em relação à exportação de bens culturais (terminologia do autor), já que toma deles uma visão particularmente heterogénea que tanto inclui decorações de Natal como música erudita e o audiovisual. Para tanto, serviu-se de uma definição de cultura, breve e bastante banal, retirada do dicionário da Porto Editora. Ora, a primeira exigência que o tratamento desta matéria impunha era justamente uma problematização da cultura e das suas definições a partir de disciplinas como os estudos de cultura, a geografia, a antropologia, os estudos artísticos — pelo menos. A definição de cultura que o relatório utiliza acaba contudo por ter o mérito de definir claramente o ponto ideológico de que parte a análise. Ressalve-se a afirmação inicial segundo a qual todas as indústrias, para o serem, têm de ser criativas.

A ideia de que o crescimento económico de qualquer país se baseia no consumo e na exploração infinita dos seus recursos deve ser questionada. As suas consequências são conhecidas e sérias: produção de CO2, esgotamento de bolsas de minérios preciosos e raros, constituição de redes hegemónicas de distribuição de produtos, etc. Por outro lado, vai contra as teses económicas mais modernas e defensoras de vários tipos de sustentabilidade, entre os quais o da sustentabilidade estética — de que é um bom exemplo a restrição do número de turistas que, em excesso, fariam perigar zonas naturais de grande beleza.

Em suma: o relatório apresenta equívocos que merecem desconstrução. O autor defende, por exemplo, que o que designa como Nova Economia assenta nas indústrias criativas, sendo estas definidas como indústrias de objectos de grande consumo — ou seja, aquelas a que escapa toda a criatividade minoritária, laboratorial, experimental e de risco. Recordemos que o termo “indústrias criativas” foi patenteado na Europa pela Terceira Via de Tony Blair, e que a sua relativa eficácia — em termos de consumo — não estava na criatividade mas na quantidade excepcional de consumidores do universo anglo-saxónico. Basta comparar essa realidade com a capacidade de produção das indústrias criativas em Portugal e com a capacidade de aquisição dos consumidores falantes de língua portuguesa para se entender a fragilidade de tal tese. (Os dados que o relatório apresenta permitem verificar isso mesmo.)

A criatividade não é necessariamente glamorosa, nem corresponde a uma ideia de gosto global; para ser exportável, tem de possuir apenas um diferenciável q.b. Este talvez seja o maior dos equívocos deste relatório: confundir cultura artística com indústrias criativas. Em arte, a criatividade é muitas vezes estranha, enigmática, incompreensível no imediato, até repulsiva, perturbadora — e, portanto, não exportável. Internacionalizável, sim; eventualmente. Mas isso no contexto de uma economia simbólica e de partilha de imaginários minoritários — duas categorias fundamentais da cultura artística que este relatório ignora por completo porque lhe são estranhas. A economia que o relatório refere é uma economia do consumo material e imediato de bens efémeros e imateriais, feito a uma velocidade que estimula e gera mais consumo. Por isso é que determinado tipo de design — aquele que incorpora as normas de um “bom gosto” global — é imprescindível nestas indústrias criativas.

Notável, também, como o relatório reconhece apenas a dimensão quantitativa da criatividade: a relevância de uma obra não é avaliada por critérios estéticos, científicos ou artísticos; o critério é, por exemplo, o número de vezes que determinado vídeo foi visto no Youtube! Não se pensou como analisar o simbólico, o fantasioso, o que terá efeitos no futuro e nos públicos do futuro — o impacto de um livro, de um filme, de uma peça musical, de uma obra de arquitectura. Não se pensou no papel do criador, do artista — aqui reduzido a angariador do eventual ganho pecuniário que a sua obra poderá obter. Coerente com esta lógica, a bibliografia apresenta uma grande quantidade de obras tecnocráticas, que não problematizam, antes são de natureza impositiva — recomendações, pareceres, estatísticas do Conselho da Europa, naquela linguagem normativa, legisladora e, de facto, pouco culta.

Do múltiplo conjunto de mapas que o relatório apresenta, há um relativo à grande diferença entre os royalties criativos que Portugal importa e os que internacionaliza. Mas se seguirmos uma linha de interpretação diferente da do autor, o que aquele mapa indica é a inexistência de uma política cultural para a internacionalização dos criadores portugueses, que não é exclusiva dos governos mas implica também as organizações culturais.

Finalmente, e de um modo subliminar, o relatório apresenta a sua ideologia do trabalho. Nisso é coerente com os seus pressupostos: se os trabalhadores da criatividade produzirem muito para exportação e consumirem o mínimo importado, aumentam o tempo de horas de trabalho e reduzem o tempo lúdico e de lazer.

Dirigido por um economista de prestígio, elaborado a partir de determinada perspectiva económica em crise, este relatório é uma encomenda da Secretaria de Estado da Cultura. Mau sinal, quando a defesa da criação e da difusão artística e das obras de culto se faz argumentando exclusivamente com a eventual rentabilidade económica das mesmas, argumentando que esse é o seu contributo para o crescimento do país. Além de ilusório, este é o tipo de argumento que justificaria a necessidade de haver muitos doentes para que os médicos e os enfermeiros não fossem para o desemprego. Que se parta de um argumento deste tipo para justificar lucros na cultura revela uma vontade política de impor e patrocinar politicamente as actividades de entretenimento de grande consumo de massas. Tão só essas: as lucrativas.

O Governo fez com este relatório auto-propaganda. Desresponsabilizando-se da política cultural de criação e de difusão, culpabiliza os criadores, as empresas e os agentes criativos pela sua incapacidade actual, dando a entender que é sobre eles e apenas sobre eles que recai o ónus de vender a criatividade do país. Mas um vídeojogo não vale o que vale Vale Abraão.

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