Catherine Deneuve e Isabelle Huppert: o género que as separa

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São hoje as maiores vedetas do cinema francês, estão nos ecrãs portugueses: "Potiche", de François Ozon,"Copacabana", de Marc Fitoussi. Ecrãs separados. São duas senhoras que ninguém arrisca juntar. Numa persistem os genes da actriz do cinema clássico, na outra o ADN da actriz do cinema moderno. É olhar

Catherine Deneuve e Isabelle Huppert são duas senhoras que não se podem ver. Ou mais precisamente, duas senhoras que ninguém pode ver juntas. Fizeram uma centena de filmes, mas cada uma para seu lado. Se as contas não falham e não estamos para aqui a cometer nenhuma "gaffe" (e se estivermos, muitas desculpas mas não há nenhuma boa maneira de cruzar duas filmografias com mais de cem títulos), o único filme em que Deneuve e Huppert se encontraram foi "Oito Mulheres", de François Ozon, estreado em 2002, e animado justamente por uma esperteza de "casting": reunir debaixo do mesmo tecto oito actrizes "emblemáticas" de várias épocas e tendências do cinema francês, de Danielle Darrieux a Ludivine Sagnier.

Naquele bolorento "pós-modernismo" de pechisbeque que fez a glória de Ozon, inchado por laivos de um pseudo-sirkianismo servido como nota de rodapé, "Oito Mulheres" é, pelo menos, uma candidatura forte ao pior (ou, o que vai dar ao mesmo, ao mais enervante) filme da vida de Deneuve e de Huppert. O que quer dizer, basicamente, que falar delas é falar de todas as vezes em que não se encontraram.

E não tinham que se encontrar. Os dez anos que separam as suas idades (Deneuve nasceu em 1943, Huppert em 1953) sublinham o óbvio: são actrizes de gerações diferentes, que chegaram ao cinema em momentos diferentes, são, em suma, actrizes diferentes, na personalidade como no estilo, ou na escola, ou como se lhe quiser chamar. Aceitando que são, actualmente, as duas maiores "estrelas" do cinema francês, até no "estrelato" são diferentes: mais mundana, muito mais "à antiga", Deneuve; mais reservada e recatada, no modelo "famosa malgré elle même", Huppert. Parafraseando um célebre filme português, não há que opor uma à outra, apreciam-se as duas, cada uma no seu género. Pormenor importante, essa diferença de natureza não é impedimento a que, em dados momentos das respectivas carreiras, elas tenham sido parecidas.

Uma e a outra

Sobretudo na juventude. A jovem Deneuve e a jovem Huppert têm algumas coisas a aproximá-las, alguns papéis e alguns filmes. Imaginemos "Repulsa", o claustrofóbico-paranóico filme de 1965 em que Roman Polanski submeteu a Catherine Deneuve de 22 anos a um prolongado ritual sadomasoquista: era o tipo de entrega, quase em "tour de force" (físico e psicológico), em que também podíamos imaginar Huppert. Ou nem precisamos de imaginar, porque já vimos e por diversas vezes: a sua Malina para o filme homónimo de Werner Schroeter, em princípios de 90, ou a sua "Pianista" no filme de Michael Haneke (2001). Huppert, valha a verdade, nunca deixou de fazer este tipo de papéis, que exigem uma resposta que está sempre no limite do suplício ou do sacrifício. Deneuve, valha a mesma verdade, entrou muito depressa (não julgaremos se demasiado depressa) numa redoma feita com a sua "allure", numa "persona" de "grande senhora", de "coiffure" imperturbável, que passou a transportar para os filmes como parte integrante de si mesma e do que tinha para lhes dar. Huppert mantém-se, ainda hoje, muito mais "modelável" e "transfigurável", disposta ao risco da auto-aniquilação dentro de cada filme e de cada personagem, do que Deneuve na maior parte da sua carreira.

Foi Huppert quem interpretou um duplo papel (ou um "papel de duplo": a gémea "boa" e a gémea "má") no "Duas" que foi o penúltimo filme de Werner Schroter, mas hoje, e desde há algumas décadas, é Deneuve quem, por regra, é sempre "duas": é ela e a sua personagem, há sempre um efeito de distanciamento nem por vir dela própria deixa de ser frequentemente estimulado pelos realizadores, que sabem que filmar Deneuve é também filmar a sua aura, o seu estatuto, o seu "mito", e melhor ou pior, jogam com isso logo a partir do momento do "casting": de Manoel Oliveira em "O Convento" ou no "Filme Falado" a Ozon, cujo "Potiche" que agora estreia retira muita da sua razão de ser do facto de ser Catherine Deneuve, e não outra actriz qualquer, a interpretar aquela personagem. Parece que estamos a ser severos com Deneuve, mas nem é o caso. Estamos a ser neutros, a dar conta de uma natureza, de uma maneira de ser e de estar. E de resto, nem sequer significa que tenhamos apenas palavras de admiração para os mais "radicais" cometimentos de Huppert (não temos, muito menos para o Haneke), limitamo-nos a insistir em que nessa disponibilidade (para o "risco", para o "suplício") está muito do que a define como actriz. Temperamentos à parte (e é sempre mau deixar os temperamentos à parte), podemos tentar explicar parte disto com a cronologia.

A clássica e a moderna

Dez anos é muito tempo. Huppert tinha dezanove anos quando fez o primeiro filme ("Faustine et le Bel Été", de Nina Companeez) mas isto foi em 1972 - é uma actriz "post", que chegou depois de todas as grande mudanças no rosto do cinema francês sucedidas durante os anos 60. Deneuve, pelo contrário, chegou, também muito novinha (fez o primeiro filme em 1957, tinha 14 anos), ainda antes disso. Os seus primeiros filmes são exemplares daquele cinema francês elefantino, antiquado e académico, a que a "nouvelle vague", entretanto eclodida, drasticamente se opunha e remeteu para a obscuridade.

Tardiamente (em 1963), e "tardiamente" para a "nouvelle vague" mais do que para Deneuve (que só tinha 20 anos), um filme salvou-a "in extremis" do que podia ter sido uma carreira anódina em filmes anódinos: "Os Guardas-Chuvas de Cherburgo", de Jacques Demy. Esse filme, investindo-a de uma doçura adolescente carregada de "pathos", de uma inocência assombrada, fixoulhe o essencial da imagem para os anos seguintes - a imagem sobre a qual perversamente variaram Polanski (no citado "Repulsa") e, mais ainda, Luis Buñuel, nesse par de filmes que, não tivesse ela feito mais nada, bastariam para garantir a imortalidade a Deneuve: "Belle de Jour" e "Tristana". Formam o par de filmes que a reinventou como a loura hitchcockiana em que Hitchcock nunca pôs a mão (embora tenha gabado a perna - "that damned cut leg" - segundo o relato que Buñuel fez do seu encontro com um Hitchcock em estado de êxtase depois de ver "Tristana").

Durante um momento, e sobretudo por causa de Buñuel, Deneuve exalou perversidade e ambiguidade sexuais por todos os poros (passe a expressão), que aproveitaram a Truffaut (o único "nouvelle vague", para além de Demy, que criou alguma cumplicidade com Deneuve) na "Sereia do Mississipi", e ao sub-Buñuel preferido de toda a gente, Marco Ferreri, cuja "Cagna Liza" ("A Cadela Liza") deu a Deneuve um papel, hoje diríamos "huppertiano", feito de apagamento e animalização sexual. Haverá excepções (Oliveira, Carax, Ruiz), assim como há com certeza muitos bons filmes depois disso, mas esse momento, em princípios de 70, foi o ponto em que Deneuve passou a ser "Deneuve", quer dizer, a transportar, e a fazer uso, de uma determinada imagem ou de uma determinada expectativa.

E foi o ponto em que entrou, numa paisagem bastante transformada, Huppert. Também foi um cineasta da "nouvelle vague" que a pôs no mapa - Chabrol, com a "Violette Nozière" de 1977 (e tornar-se-iam "cúmplices"). E foi a outro deles, Godard, que Huppert se entregou, nos filmes do "come back" ("Sauve qui Peut", "Passion") em princípios dos anos 80, para alguns dos mais difíceis papéis que alguma actriz de cinema alguma vez teve que enfrentar (dizse: Godard delirava por Huppert não se deixar intimidar nem manifestar nenhum desconforto). Mas talvez seja isto, basicamente: em Huppert há o ADN de uma actriz do cinema moderno, em Deneuve persistem muitos dos genes de uma actriz do cinema clássico. Portanto, as duas, cada uma no seu género.

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