Calmo, demasiado calmo este quarto dia de Paredes de Coura

Os Echo & The Bunnymen deram uma pálida imagem da grandeza de outrora, os The Horrors passaram por nós sem sobressalto. Saltámos com essa dádiva rock’n’roll chamada Glockenwise e fomos provocados pelos Iceage, mas foi tépido o quarto dia de Paredes de Coura. O festival termina este sábado com os Belle & Sebastian

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PAULO PIMENTA
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Algo de estranho se passa quando uma banda histórica termina a sua actuação e percebemos que as canções mais aplaudidas do concerto não lhe pertencem. Ian McCullouch até apresentou e cantou a, citamos o próprio, “melhor canção alguma vez composta”, The killing moon, peça central desse grande álbum chamado Ocean Rain, mas o público, muito pouco interessado no que se passava em palco, só acordou da letargia quando os Echo & The Bunnymen homenagearam dois dos seus heróis, duas das suas referências maiores: os Doors, com Roadhouse blues, e Lou Reed, com Take a walk on the wild side. Um concerto tépido, cansado, desinteressante. Felizmente temos os discos (o supracitado Ocean Rain ou Crocodiles, matéria indispensável da história rock da década de 1980). Podemos esquecer os concertos, este concerto.

Os Echo & The Bunnymen podiam ser os cabeças de cartaz do quarto dia do Paredes de Coura, mas passaram pelo festival sem causar impacto. Ian McCollouch, óculos escuros, cantou lá longe em pose imperturbável, os ecrãs de palco mantiveram-se a negro (aparentemente a banda não autorizou a transmissão do concerto) e a pouco distância de nós um fã de longa data filmava, fotografava, cantava e sorria muito feliz perante as canções do encore, Nothing lasts forever, sucesso da segunda vida da banda, de 1997, e Lips like sugar. Foi para ele que os Echo & The Bunnymen tocaram. Quando se despediram, tinham perante si um anfiteatro natural repleto de clareiras. Um final pouco memorável para um dia sem grandes destaques. Ou melhor, o quase final. Porque depois chegaram os Simian Mobile Disco, as luzes de palco faiscaram, o house bombou como esperado e aí sim, o anfiteatro encheu-se de gente dançando tudo o que não dançara durante o dia.

Horas antes, testemunhávamos o culto que rodeia Noiserv, ou seja, o homem-orquestra David Santos. Às 18h, o palco Vodafone FM estava bem preenchido de público conhecedor, acompanhando aquelas canções delicadas construídas em tempo real (um loop de guitarra, outro de teclas, camadas de vozes sobrepostas, uma pistola de brincar disparada para efeito sonoro). Canções tocadas por uma melancolia tocante e por uma inocência quase infantil: uma caixinha de música de onde saíram Today’s the same as yesterday, but yesterday is not today ou I was trying to sleep when everybody woke up. Um concerto intimista, qual actuação descontraída em sala de estar (e esse ambiente fez bem à música).

Pouco após a saída de palco de Noiserv, tudo se alterava. O palco principal recebia os barcelenses Glockenwise e os Glockenwise fizeram o que melhor sabem. Rock’n’roll sem tempo a perder: bateria em aceleração, guitarras entregues às maravilhas da “riffalhada” descoberta entre garage de ontem e de hoje e vozes que gritam para fazer de cada canção uma superação da banalidade dos dias. Abre-se uma clareira de mosh pit nas filas da frente, o sol brilha alto no céu, e os Glockenwise, dádiva rock’n’roll que sabe quando ser efusiva (“Can I hang out with you?”, cantam em conjunto), quando transformar riff pesado em matéria pop (Napoleon) e como lançar proto manifestos em forma de canção (Stay irresponsible), assinam um dos melhores momentos do quarto dia de festival. Tiveram o apoio em palco de João Vieira em guitarra e sintetizador (o X-Wife que, de madrugada, encerraria a noite enquanto White Haus, substituindo Will Saul, cancelado à última hora) e do saxofonista Pedro Sousa. E deixaram-nos, uma vez mais, a certeza de que têm dois destinos perante si: num deles, tornam-se merecidamente estrelas do rock’n’roll cá da terra; noutro, continuam figuras de culto e, daqui a 20 anos, estaremos a recordar com um sorriso nos lábios os concertos que quatro tipos de Barcelos davam em sítios como Paredes de Coura (qualquer dos destinos é, obviamente, radioso).

Dali até ao concerto sem história dos históricos Echo & The Bunnymen, ouvir-se-ia os ingleses Peace fazer justiça ao álbum maldito dos Stone Roses, Second Coming, e, ao mesmo tempo, a reverterem o ruído shoegaze para rock’n’roll clássico, muito divagante e muito empenhado (uma boa surpresa, a rever). E passaríamos pelo descalabro punk dos dinamarqueses Iceage, fenómeno seguido com entusiasmo no segundo palco, banda liderada por um vocalista que vocifera sem perder a pose, grupo que transforma o punk de 1977 em matéria inflamável, que trata o hardcore como arma de combate. Música perturbada e perturbadora esta de New Brigade e de You’re Nothing, os dois álbuns editados até ao momento (felizmente, não houve sinais dos flirts com iconografia xenófoba que o vocalista Elias Bender Rønnenfeltpor vezes promove, gesto provocatório infantil e absurdo).

Antes de Ian McCullouch assomar em palco, ouvir-se-ia ainda um dos seus descendentes. Os Horrors tinham fãs a esperá-los nas primeiras filas da plateia desde cedo, mas passaram por Paredes de Coura sem deixar rasto. A outrora skinniest band in England vive hoje recheada de memórias do negrume da década de 1980 e, na verdade, de todas as décadas: o barítono de Faris Badwan aproxima-o de Scott Walker, as manchas sonoras de sintetizador atiram-nos para profundezas pós-punk, uma canção como a muito celebrada Still life recorda-nos que existe um grupo chamado The Cure.

Ainda assim, faltou chama a um concerto muito competente, muito sério na pose, muito concentrado nas tonalidades das canções de Primary Colours e Skying. A barreira de ruído que ergueram no final, quais Jesus & The Mary Chain em ebulição, podia ser a faúlha que ateasse fogo ao concerto. Mas os Horrors despediram-se, o público sereno manteve-se sereno e aguardou pacientemente até ao concerto seguinte. Depois do dia em que os The Knife chegaram para iniciar uma longa discussão, um dia antes de nos reencontrarmos com os Belle & Sebastian ou com os Calexico, a dolente agitação da tarde nas margens do rio Coura manteve-se igual a si mesma e o ambiente bucólico continuou a fazer-nos bem. A noite de também decorreu sem sobressaltos. Mas nessa altura queríamos mais. Foi tudo calmo, demasiado calmo.

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