Manhunt, documentário sobre captura de Bin Laden, contesta o rigor do filme de Bigelow

Apresentado no Festival de Sundance, baseia-se nos depoimentos de três agentes da CIA que contestam 00.30 Hora Negra

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A morte de Osama não é o fim, avisa um ex-agente da CIA

00.30 Hora Negra, o filme de Kathryn Bigelow sobre a captura de Osama Bin Laden em 2011, funciona bem como “entretenimento”, mas “não é rigoroso” na forma como apresenta o trabalho da CIA e dos outros organismos de segurança nacional norte-americanos.

Quem o diz são três antigos agentes da CIA que participam no documentário Manhunt: The Search for Bin Laden, realizado por Greg Barker para a HBO, que estreou esta semana no Festival de Cinema de Sundance, nos EUA.

O documentário baseia-se em depoimentos de figuras ligadas à CIA, e conta com a colaboração do jornalista Peter Bergen, que em 1997 fez para a CNN, juntamente com Peter Arnett, a primeira entrevista a Bin Laden na televisão americana. Inclui além disso material inédito de propaganda da Al-Qaeda, imagens de treinos e vídeos com mensagens de suicídio.

É inevitável que para se falar de Manhunt se comece por falar de 00.30 Hora Negra. O documentário de Barker pretende ser um relato alternativo, e mais fiel à realidade, da operação que levou à captura do líder da Al-Qaeda. Por isso, a apresentação em Sundance ficou marcada pelas entrevistas aos três ex-agentes da CIA, Nada Bakos, Cindy Storer e Marty Martin, todos eles directamente ligados à investigação sobre Bin Laden, que começou em 1993, ainda antes do primeiro ataque ao World Trade Center (seis pessoas morreram e mais de mil ficaram feridas na explosão de um carro armadilhado). Os três deixaram a CIA em 2007 e 2008 e tiveram autorização da agência para falar em Manhunt.

O que Bakos, Storer e Martin confirmam é a influência que as mulheres tiveram em todo o processo. Se o filme de Bigelow se centra em Maya, uma jovem agente da CIA interpretada por Jessica Chastain, Manhunt vai mais longe, e conta como a investigação sobre o líder terrorista partiu de um grupo de mulheres analistas da CIA conhecido como "The Sisterhood" (ao qual Cindy Storer pertencia), que foi o primeiro a detectar a existência da Al-Qaeda. O grupo mais alargado que esteve depois envolvido na captura tinha o nome de código de "Alec Station", e foi formado pela CIA em 1995.

A cena do raid dos SEALs, tropas especiais da Marinha americana, contra o complexo onde Bin Laden estava escondido no Paquistão, agradou a Bakos, Storer e Martin. Mas o mesmo não aconteceu com a forma como outra agente da CIA, Jennifer Matthews, é apresentada no filme de Bigelow. Matthews, que morreu num atentado suicida, “aparece como uma colegial superficial”, lamenta Storer. “Isso não representa a pessoa que ela era. Perdi o respeito [pelo filme] logo aí”.

Quanto a Maya, a personagem central do filme, afirmam que nunca houve ninguém a acompanhar o processo durante tanto tempo – Maya seria assim uma personagem composta a partir de várias mulheres reais, uma das quais a própria Nada Bakos.

Os três contestam também a forma como o trabalho de Bigelow mostra os interrogatórios de suspeitos torturados para darem as informações, que, eventualmente, conduziram a Bin Laden. Martin considerou que “o material sobre os interrogatórios é completamente inexacto”, e disse ao site The Daily Beast que as técnicas utilizadas na realidade eram “muito mais sistemáticas, clínicas e profissionais”. Nada Bakos classificou as cenas que mostram os prisioneiros a serem espancados e vítimas de simulações de afogamento como “horríveis de se ver”.

Para o realizador de Manhunt, Greg Barker, a polémica que se instalou em torno de 00:30 Hora Negra precisamente por causa das cenas de tortura passa ao lado do que, segundo ele, é o mais importante. “O facto é que o que as nossas operações especiais fazem é conduzir operações para matar ou capturar pessoas todo o tempo, e isso causa muitas vítimas. Talvez seja isso que queremos enquanto país, mas temos que olhar para isso e compreender para sabermos o que se passa realmente”.

Questionado pelos jornalistas sobre se foram técnicas de tortura que permitiram obter a informação que levou à captura de Bin Laden, o ex-agente Marty Martin limitou-se a dizer, citado pela Associated Press, que “técnicas de interrogatório reforçadas” foram úteis, mas sublinhou que isso ajudou a salvar centenas de milhares de vidas. “Isto é a América. Precisamos de ter este debate. Se queremos tomar a decisão de que 5000 pessoas poderão morrer porque não queremos que um tipo mau se sinta desconfortável, então temos que a tomar. Mas nesse caso temos que assumir a responsabilidade e sermos capazes de olhar nos olhos os familiares das vítimas depois disso acontecer”.

Na entrevista que deram ao The Daily Beast, os três ex-agentes deixam uma coisa clara: há muito tempo que a CIA vinha avisando as Administrações norte-americanas (primeiro a de Bill Clinton, depois a de George W. Bush) de que a Al-Qaeda e Bin Laden representavam um perigo. “Durante todo o Inverno e Primavera de 2001, toda a gente estava a tentar fazer passar essa mensagem”, diz Cindy Storer. Sem sucesso.

O primeiro briefing que fizeram alertando para “os árabes afegãos [muçulmanos que tinham combatido contra os soviéticos no Afeganistão na década de 80] que andavam por todo o mundo a fazer coisas loucas” foi em 1993 (Clinton tomara posse em Janeiro), duas semanas antes do primeiro atentado contra o World Trade Center (a 26 de Fevereiro). “A resposta que tivemos foi ‘o Presidente não perguntou nada sobre isso, não está preocupado com o assunto’”, conta Storer ao Daily Beast. “Depois aconteceu o atentado e recebemos uma chamada a perguntar ‘sabem alguma coisa sobre estes árabes afegãos?’. E eu fui demasiado educada para responder ‘fuck you’”.

Marty Martin tem mais uma coisa a acrescentar: “O facto de Osama estar morto não significa nada. Há milhares de árabes afegãos que passaram por programas de treino para terroristas, e agora estão espalhados pelo mundo. […] Isto ainda não terminou”. 

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