Que podemos aprender hoje com a Europa de 1914?

O centenário da Grande Guerra de 1914-18 suscita uma reflexão sobre os riscos do mundo em que vivemos. Historiadores, analistas e jornalistas fazem paralelos entre 1914 e 2014. Que lições nos deixa a tragédia fundadora do século XX?

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Quando a Europa comemorou em 1994 os 80 anos da eclosão da Grande Guerra de 1914-18, fê-lo num estado de espírito muito particular — o da despedida do trágico século XX. Com o fim da União Soviética, encerrava-se uma era. A construção europeia acelerava-se e a UE preparava a integração do Leste, reunificando o Continente. Dominava a pax americana. Fukuyama publicava O Fim da História. Admitia-se uma “globalização feliz”. Apenas o regresso da palavra Sarajevo e a irrupção dos nacionalismos trazia alguma perturbação. Mas, sobretudo, tiravam-se as lições do “suicídio” de 1914 — um facto já muito distante.

O espírito do tempo mudou. “Um espectro assombra o mundo: 1914” — escreve o historiador Harold James, professor em Princeton, na International Affairs, da Chatham House de Londres. “A aproximação do centenário da eclosão da I Guerra Mundial faz evocar o modo como a instabilidade produzida por mudanças na balança do poder num mundo integrado e globalizado pode produzir cataclismos.”

Em Janeiro de 2013, Jean-Claude Juncker, então presidente do Eurogrupo e primeiro-ministro luxemburguês, convidou os jornalistas a anotarem os paralelos com 1913, “o último ano da paz na Europa”. Surgem estranhos títulos nos jornais e revistas europeus, americanos e asiáticos: “1914-2014, o mesmo combate?”; “Será 2014 uma repetição de 1914?”; “Tempo de pensar mais em Sarajevo e menos em Munique”; “A China não deve imitar os erros do Kaiser”; “Ouvindo os ecos de 1914 em 2014”; “1914 e hoje”; “É a China a Alemanha de hoje?”; ou (num jornal chinês) “Deixem de comparar a China com a Alemanha de 1914”.

No 1º de Janeiro, o Financial Times fez de 1914 o tema do seu editorial: “Reflexões sobre a Grande Guerra — o mundo pode ainda tirar as lições da catástrofe de 1914.” O diário da City pensa que “o mundo de 2014 não está à beira de um tal desastre histórico”. Mas o centenário é uma oportunidade para estudar algumas lições: “É uma loucura ir para a guerra na crença de que será curta e com consequências controláveis. Em 1914, alguns políticos e generais europeus, cuja visão fora moldada pelas guerras que unificaram a Alemanha e a Itália no século anterior, incorreram nesta ilusão. O mesmo fizeram Washington e Londres quando invadiram o Iraque em 2003. Quão errados estavam estes chefes de guerra em ambas as ocasiões.”

Por trás desta reflexão e destes títulos estão a tensão no Mar da China Oriental, os focos de conflito no Médio Oriente e também uma Europa “abalada pela crise e pela dúvida”.

A guerra civil europeia
É inevitável uma curta passagem pela Grande Guerra. “Se não podemos conceber o século XIX sem a Revolução Francesa, não podemos pensar as tragédias do século XX sem a Grande Guerra”, afirmou o historiador francês François Furet. Sem ela, o fascismo, o comunismo, o nazismo e a II Guerra Mundial não seriam concebíveis. Foi uma “guerra civil europeia”, antes de ser mundial, “em que milhões de homens foram lançados numa guerra total e arrancados às suas solidariedades tradicionais, encontrando-se numa posição de absoluta subordinação ao Estado e ao interesse nacional. Numerosas camadas da população aprenderam a política através da guerra. Foi a entrada patológica [da Europa] na democracia” (Furet). “Foi a catástrofe fundadora do século” (George Kennan).

Envolveu um grau de violência até então inimaginável, uma “brutalização” das sociedades, culminando numa perda dos valores — e o da vida em primeiro lugar. “A banalização da violência continua em nós e penso que a podemos ligar à I Guerra Mundial”, diz o historiador americano Jay Winter, especialista da Grande Guerra.

Porquê, porquê, porquê?
Quatro impérios desapareceram na tormenta: o alemão, o austro-húngaro, o otomano e o russo — que deu lugar à União Soviética. O moderno Médio Oriente e os seus conflitos nasceram desta guerra.

Fez 19 milhões de mortos, entre eles nove milhões de soldados. Há um termo de comparação mais eloquente. Só na Batalha do Marne, de 7 a 12 de Setembro de 1914, a França perdeu 80 mil homens e a Alemanha talvez outros tantos. Em toda a Guerra do Vietname, morreram 47 mil militares americanos.

A Europa vivia o mais longo período de paz da sua História — com excepção da guerra da Crimeia, na periferia, ou da breve guerra franco-alemã de 1870. A Europa era o centro económico, político e cultural do mundo, detentora de vastos impérios coloniais. Os EUA ou o Japão eram potências emergentes. Nenhum europeu imaginava a perda do estatuto central da Europa durante muitas gerações.

Interroga-se Jay Winter: “1918 já está muito distante de nós mas é ainda um puzzle. Foi para quê? Porquê? Porquê o banho de sangue? Porquê a carnificina? Esta pergunta é, para mim, a questão chave de todo o século XX. Porquê a violência? Porquê a crueldade?”

Na França e na Alemanha os soldados partiram para a guerra como para um piquenique, saudados nas ruas por multidões patrióticas. Esperavam passar o Natal em casa.
 
Clark e MacMillan
O centenário suscitou uma imensa produção historiográfica. Mas dois historiadores têm um papel relevante no novo olhar sobre “a actualidade de 1914”. O australiano Christopher Clark, professor em Cambridge, publicou em 2012 um livro intitulado The Sleepwalkers — How Europe Went to War in 1914. Os “sonâmbulos” são os políticos e militares que se lançaram na guerra. No ano passado, a canadiana Margaret MacMillan, professora em Oxford e Toronto, publicou um livro sobre o processo que levou à “guerra que pôs fim à paz” — The War that Ended Peace: The Road to 1914.

Os dois livros têm muito em comum. O objectivo não é procurar o “culpado” como num romance policial. O que mais interessa aos dois autores é o modo como os europeus avançaram para a catástrofe. Concordam com Churchill: “Nenhum episódio da I Guerra Mundial tem um interesse comparável com o seu começo.” É esta abordagem — a da engrenagem da guerra — que os torna politicamente “actuais”, suscitando um debate não apenas na imprensa mas em think tanks de política internacional, da Europa à Ásia.

O título de Clark explica-se em poucas palavras: “Os protagonistas de 1914 eram sonâmbulos, aparentemente vigis mas incapazes de ver, atormentados pelos seus pesadelos mas cegos perante a realidade do horror que estavam prestes a lançar no mundo.” Estuda o quadro político que precede a guerra, o encadeado de pequenos e grandes episódios que desestabilizam a ordem internacional e, sobretudo, as percepções erradas dos adversários, de parte a parte, numa engrenagem que leva à guerra a partir de um “detonador geopolítico ao longo da fronteira austro-sérvia”.

No fim da guerra, os vencedores designaram os vencidos como “culpados”. Alguns protagonistas lembraram mais tarde a inconsciência da época, como Lloyd George, primeiro-ministro britânico a partir de 1916: “As nações escorregaram para o caldeirão fervente da guerra sem o mínimo traço de apreensão ou perturbação.”

MacMillan (bisneta de Lloyd George) centra-se no encadeamento de factos que levou à tragédia: “Afinal de contas, a questão mais interessante é: como foi que a Europa atingiu, no Verão de 1914, o ponto em que a guerra se tornou mais provável (...) e como falhou a paz.” Também ela fala nos equívocos dos protagonistas, nos múltiplos erros de percepção, sobre as intenções dos adversários ou a avaliação das suas fraquezas e forças, na vontade de domínio ou nos seus fantasmas: o medo da Alemanha, que teme ser cercada pela Rússia e pela França; ou o temor britânico de que o crescente poderio da marinha alemã pusesse em causa a sua hegemonia nos mares, ameaçando o império.

Do Mar da China ao euro
Tudo isto são temas que nos são familiares no mundo do século XXI. No livro Da China (2011), Henry Kissinger dedica o capítulo de conclusão — “A História repete-se?” — à comparação entre as relações sino-americanas de hoje e a rivalidade anglo-alemã na véspera de 1914. “Um aspecto da tensão estratégica na actual situação mundial reside no medo chinês de que os Estados Unidos estejam a procurar conter a China — que tem paralelo na preocupação americana de que a China esteja a procurar expulsar da Ásia os Estados Unidos.”

Muitos temem a repetição de um “detonador geopolítico”, de uma nova Sarajevo, desta vez no Mar da China Oriental, combinando o contencioso sino-japonês, o choque dos dois nacionalismos e a rivalidade sino-americana. Depois do fim da ordem bipolar da Guerra Fria e do breve “momento unipolar” americano, emergiu “um sistema crescentemente multipolar, opaco, imprevisível. Como em 1914, uma potência emergente opõe-se a uma potência cansada — mas não necessariamente em declínio”, escreve Clark num artigo publicado há dias nos jornais europeus.

Curiosamente, Clark projectou a sua análise de 1914 sobre a crise do euro de 2010-11, quando estava a terminar o livro. “Os líderes da zona euro, como os de 1914, tinham consciência da possibilidade de um desfecho de consequências catastróficas” — o fim da moeda. Mas o medo da catástrofe não foi bastante para os levar a posição consensual e a colocar os interesses comuns acima dos particulares. Também na Europa de hoje haveria alguns “sonâmbulos”.

Analogias e lições
O South China Morning Post, de Hong Kong, adverte contra as analogias: “A ascensão da China moderna cedo foi comparada com a da Alemanha de Guilherme II. Mas tal ‘aprendizagem’ com a História pode ser mais enganadora do que útil. Os que tiram lições erradas da História estão a preparar-se para cometer erros ainda maiores.”

Também o analista americano Joseph S. Nye receia que as analogias com 1914 criem a ilusão de “inevitabilidade” e reforcem a tese de que “a ascensão do poderio da China não se poderá fazer pacificamente” (John Mearsheimer). Contesta alguns paralelos de MacMillan: “O mundo de hoje é diferente do de 1914, sobretudo por causa da arma nuclear. Os dirigentes têm uma ideia do que pareceria o mundo depois de um conflito nuclear.” Se o Kaiser ou o Czar imaginassem o que ia acontecer aos seus impérios teriam sido mais prudentes.

Clark tem outro entendimento das lições da História. “A China de hoje é o equivalente da Alemanha imperial de 1914? Se é o caso, que lições devemos tirar? Se somos da opinião de que a agressão alemã foi a causa principal da I Guerra Mundial, conclui-se que os EUA devem adoptar uma linha dura contra as actuais manobras chinesas. Mas, se considerarmos, como é o meu caso, que a guerra de 14-18 foi consequência da interacção entre várias potências, todas dispostas a recorrer à violência para defenderem os seus interesses, é preciso deduzir que devemos encontrar melhores meios de integrar as potências emergentes no sistema internacional.”

Em geral, os homens aprendem pouco com a História. Mesmo assim, 1914 ajuda a pensar 2014. “Penso que não podemos tirar lições claras da História. Mas podemos aprender a afastar algumas possibilidades perigosas”, diz MacMillan. Deixa um conselho mínimo: “Nunca devemos tomar a paz como garantida nem acreditar que somos demasiado civilizados para guerrear. Os europeus cometeram este erro em 1914.”
 

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