UE espera sinal claro de Obama para continuação de acordo comercial transatlântico

Negociações mexem com tradições, culturas e modos de vida de europeus e americanos. E por isso começam a gerar controvérsia.

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Obama na cimeira UE-EUA de 2010, em Lisboa Nuno Ferreira Santos

A crise da Ucrânia vai impor-se como tema dominante da visita que Barack Obama realiza a partir de hoje à Europa, tanto em temos de coordenação das sanções a adoptar contra a Rússia por causa da anexação da Crimeia, como enquanto possível acelerador das negociações bilaterais para a conclusão de um ambicioso acordo de comércio livre transatlântico.

De Obama, a União Europeia (UE) espera obter na quarta-feira, durante uma cimeira com Durão Barroso e Herman Van Rompuy, presidentes da Comissão Europeia e do Conselho Europeu, um sinal claro de continuação do seu compromisso com o novo acordo comercial, mais conhecido pela sigla inglesa T-TIP.

Este objectivo foi lançado pelo presidente americano no seu discurso anual sobre o estado da União de Fevereiro de 2013, mas tem estado desde então ausente do seu discurso, o que leva os europeus a temer que a sua atenção esteja mais virada para um outro acordo do mesmo tipo em negociação há quatro anos com 12 países da Ásia e Pacífico (TPP), que exclui a China.

Com a deslocação a Bruxelas, Obama vai dar “um sinal de que ainda há uma atenção ao mais alto nível sobre o T-TIP”, e “lembrar que ainda é uma prioridade”, sublinha William Kennard, ex-embaixador dos Estados Unidos em Bruxelas.

Esta preocupação de manter as amarras de Washington com o velho continente tem sido uma constante praticamente desde o fim da Guerra Fria para vários países da UE, a começar pela Alemanha e o Reino Unido, os dois grandes impulsionadores do T-TIP. Com este objectivo em mente, a UE elevou a barra das negociações, anunciando a intenção de criar nada menos do que uma união económica entre os dois maiores blocos económicos mundiais, que reúnem 800 milhões de pessoas e geram metade do PIB global.

Este objectivo é bem mais fácil de enunciar do que de concretizar, devido aos inúmeros pontos de fricção entre os dois blocos, que foram agravados desde o Verão pelas revelações de espionagem americana de milhões de europeus, incluindo responsáveis políticos.

As dificuldades são tais que o calendário para a conclusão das negociações inicialmente prevista para o fim deste ano tem vindo a resvalar, provavelmente para 2016.

A ideia de negociar um acordo de comércio livre começou, aliás, a ser pensada há mais de 20 anos, sem nunca ter conseguido ser concretizada.

Ninguém está hoje em condições de antever quais poderão ser os contornos de um acordo destes, tanto mais que as negociações, que arrancaram formalmente em Julho depois de dois anos de preparação do terreno, ainda não passaram da fase da auscultação de posições.

A dificuldade está em que, ao contrário dos acordos comerciais tradicionais, as negociações não visam reduções de tarifas à importação, que já são relativamente baixas entre os dois blocos. O grande objectivo do T-TIP será eliminar ou simplificar outros obstáculos às trocas comerciais, resultantes dos diferentes tipos de regras sanitárias ou de segurança, e de protecção da saúde ou dos consumidores, que vigoram em cada um dos blocos e que são muitas vezes incompatíveis.

As pequenas e médias empresas americanas queixam-se de não terem capacidade para cumprir simultaneamente as regras nacionais e europeias nestas áreas, de tal forma que, sublinham, só 1% do total está virada para a exportação.

A grande dificuldade deste processo é que as regras visadas nas negociações estão ligadas a modos de vida, culturas, valores e tradições diferentes, o que as torna dificilmente conciliáveis.

É por essa razão, aliás, que o T-TIP já está a gerar alguma controvérsia nalguns países da UE, devido ao receio de que possa resultar numa diluição dos níveis de protecção europeus.

Uma das regras básicas europeias, o chamado “princípio de precaução” – que incita à prudência legislativa quando os efeitos de novos produtos ou tecnologias, como os organismos geneticamente modificados (OGM), não são conhecidos – está sob o fogo da administração e das empresas americanas, que estão a dar tudo por tudo para o contornar.

Do ponto de vista americano, a definição de regras nestas áreas tem de ser baseada na ciência, o que significa que enquanto não houver provas de nocividade, os novos produtos ou tecnologias devem ser autorizados. Não é claro como é que abordagens tão diferentes poderão ser conciliadas.

Na impossibilidade de harmonização legislativa, a esperança dos negociadores é conseguir algum tipo de reconhecimento mútuo das suas regras, de forma a que normas impostas num dos blocos, por exemplo em matéria de segurança dos automóveis, sejam reconhecidas como válidas no outro, de modo a poupar duplicações. Mais importante ainda, os dois blocos esperam conseguir criar um mecanismo de diálogo permanente entre os seus reguladores para permitir uma concertação de posições antes da definição de novas regras.

Europeus e americanos garantem a pés juntos que o acordo não vai baixar os níveis de protecção , mas apenas simplificar as regras e, sempre que possível, adoptar procedimentos de reconhecimento mútuo. Só que o facto de as negociações se desenrolarem em privado e de forma pouco transparente não ajuda a sossegar os receios de muitos opositores europeus do T-TIP que consideram, aliás, que os Estados Unidos estão em posição de força. “Os americanos usam o poder negocial do TPP para pressionar os europeus”, frisa André Sapir, analista do grupo de reflexão europeu Bruegel.

A pressão implícita é tanto maior quanto a UE parece bem mais interessada no T-TIP do que os EUA pelo facto de o encarar numa perspectiva geopolítica e enquanto complemento económico e comercial das garantias de segurança asseguradas pela NATO.

Para os americanos, em contrapartida, o T-TIP é , de facto, um acordo comercial, embora seja igualmente visto como uma oportunidade para definir um formato para futuras negociações comerciais, a começar pelos acordos que os dois blocos estão a negociar em paralelo e de forma separada com a China. Para os americanos, sendo a UE e os EUA responsáveis por cerca de dois terços de toda a regulamentação mundial, tudo o que não estiver consagrado no T-TIP será impossível de impor a Pequim.

O PÚBLICO viajou a convite do Governo americano

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