Rendeiro tem novo inquérito judicial devido à venda de quadros ao BPP

Ex-banqueiro utilizou galeria para esconder que estava a vender obras de arte ao banco que liderava.

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O negócio de venda ao Banco Privado Português (BPP) de obras de arte pertencentes a João Rendeiro, quando este era o presidente, com recurso a uma galeria de arte e a offshores, deu origem à abertura de um novo inquérito judicial.

O produto do negócio serviu para Rendeiro participar no aumento de capital da Privado Financeiras (PF) — operação que vai a julgamento e envolve mais dois arguidos, ex-gestores do BPP, Paulo Guichard e Salvador Fezas Vital — "sem despender" dinheiro seu.

O Ministério Público (MP) já admitiu existir perigo de fuga dos três arguidos, que são banqueiros e conhecem a alta finança internacional, tendo detectado movimentos financeiros envolvendo países sem acordos de extradição com Portugal. As autoridades alertam para as viagens frequentes de Rendeiro a Singapura, Rússia e Dubai. No caso de Paulo Guichard, que declarou insolvência e, tal como Oliveira Costa, se divorciou, o MP encontrou em sua casa "planos escritos" para se casar com uma cidadã cabo-verdiana, planos que substituiu por uma cidadã brasileira. Hoje vive em Ipanema, no Rio de Janeiro, e tem nacionalidade brasileira.

Na segunda-feira, o juiz Carlos Alexandre confirmou a decisão do Ministério Público, que acusa João Rendeiro de burla qualificada em co-autoria com Paulo Guichard e Fezas Vital, por envolvimento "fraudulento" na condução do aumento de capital, de 100 para 200 milhões de euros, da Privado Financeiras (PF), em Março de 2008. Os arguidos terão ocultado dos outros investidores da PF a verdadeira situação da sociedade, criada para investir no BCP. Na altura, o veículo já estava tecnicamente deficitário, com uma dívida de 200 milhões de euros ao JP Morgan e um descoberto no BPP de 50 milhões.

Cinco milhões em prémios
No ponto referente à "concretização do aumento de capital" da PF, formalizado a 2 Abril de 2008, em Bruxelas, a acusação do MP revela o "caminho" usado pelos arguidos para "arrastarem" particulares (a maioria clientes do BPP) para a operação — um esquema que levantou dúvidas aos investigadores e acabou na abertura de um novo inquérito judicial.

No documento lê-se que Rendeiro, Guichard e Fezas Vital investiram a título pessoal no aumento de capital da PF com o objectivo de "não descredibilizar o veículo e obstar a que os restantes investidores interpretassem a sua não-adesão como um sinal de que não seria uma boa opção financeira". Mas, por terem "pleno conhecimento da difícil situação financeira" da PF "e do risco de se perder todo o capital investido", os três ex-gestores optaram por não "despenderem liquidez sua". Assim, na sua qualidade de administradores do BPP, atribuíram-se a si próprios, "antecipadamente [um ano antes do que seria normal] e sem que estivessem reunidas as condições para tal", prémios superiores a cinco milhões de euros, que receberam a poucos meses do banco entrar em colapso.

O MP explica que, no caso de Rendeiro, como o bónus (2,353 milhões de euros) não chegava para completar os três milhões de euros que aceitou subscrever no aumento de capital da PF, angariou a restante verba alienando ao BPP "obras de arte" que lhe pertenciam. Para "ocultar o facto de, nessa venda, figurar como vendedor do adquirente BPP", a que presidia, fez "intervir na transacção, como intermediária", a sociedade Cristina Guerra - Galeria de Arte. Assim, a 25 de Fevereiro de 2008, a galerista adquiriu-lhe (sem pagar de imediato) as obras de arte (1.704.500 euros), que vendeu no dia seguinte ao BPP (mediante ordem de Rendeiro e "acordo" de Fezas Vital) por mais 131 mil euros. Mas o negócio só foi concretizado a 6 de Março, quando o banco pagou à galerista 1.828.246 euros. Só então Cristina Guerra reembolsou Rendeiro, que reenviou a verba (1.704.500 euros) para uma conta do BPP, em Delaware, pertencente a uma sociedade offshore, a Corbes Group, do banqueiro.

No passo seguinte, Rendeiro deu nova ordem, agora transferindo 610 mil euros da conta em Delaware para outra nas ilhas Caimãs, associada a uma outra offshore, a Telesis Holding, que lhe pertence. De acordo com o MP, os três milhões de euros investidos pelo ex-banqueiro foram retirados da conta nas Caimãs.

Colapso e falência
O PÚBLICO tentou obter esclarecimentos junto de Fátima Godinho, da Carneiro Pacheco & Associados, que apoia cerca de 20 queixosos que pediram indemnizações aos três arguidos, mas esta alegou estar impedida de comentar processos em julgamento. Os ofendidos estão a reclamar em tribunal uma caução económica de sete milhões de euros, tendo o MP juntado mais 3,5 milhões, em resultado não só da gravidade do crime, mas também pelo facto de Rendeiro, Paulo Guichard e Fezas Vital terem sido banqueiros durante um período "longo de vida" e com conhecimento do meio. Estão referenciados cerca de 40 ofendidos no caso BPP que alegam ter tido um prejuízo global à volta de 50 milhões pela participação no aumento de capital da PF, mas só cerca de metade (apoiados por Fátima Godinho) vieram reclamar compensações em tribunal.

Com 600 accionistas e cerca de três mil clientes, o BPP funcionou desde a constituição, em 1996, até entrar em colapso, em Dezembro de 2008, como gestor de fortunas. Erros de gestão, incumprimento das regras do BdP e da CMVM, e actos, alegadamente, ilícitos ditaram a falência em 2010.

No núcleo central de accionistas de referência do BPP, para além do próprio Rendeiro (com 12%), constavam, entre outros, nomes como os de Francisco Balsemão (Impresa), que presidia ao Conselho Consultivo, de Nuno Vasconcelos (Ongoing), de Diogo Vaz Guedes, de Stefano Saviotti ou de Joaquim Coimbra (também accionista da SLN/BPN). Nos órgãos sociais tinham assento, por exemplo, o actual ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, o advogado José Miguel Júdice (que presidia à Assembleia Geral), António Pinto Barbosa (presidente do Conselho Fiscal), João de Deus Pinheiro, António Nogueira Leite, Álvaro Barreto ou João Cravinho.

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