Voluptuosidade, fantasia e subtileza

Christina Pluhar demonstrou a sua capacidade de reinventar a interpretação de obras do período barroco, neste caso de composições do barroco italiano do século XVII em torno da figura da Virgem Maria.

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L'Arpeggiata DR

O programa deste concerto foi maioritariamente constituído por peças que aliam a figura maternal da Virgem Maria à retórica musical do barroco italiano do século XVII. A expressividade da monodia e do virtuosismo vocal e instrumental do barroco inicial foi intensificada pelos arranjos de Pluhar e pela superior qualidade interpretativa do seu grupo, que transpirou cumplicidade e maturidade musical ao longo de todo o concerto.

A interpretação demonstrou um perfeito domínio do conceito de Sprezzatura, tão caro aos músicos e compositores do barroco inicial italiano (interpretação musical ritmicamente flexível, de forma a explorar o poder expressivo da dissonância e da ornamentação). 
 
O grupo L’Arpeggiata aliou o profundo conhecimento estilístico à liberdade criativa, temperando-os com bom gosto e com o prazer de fazer boa música. Constituído por catorze peças (vocais e instrumentais), o concerto teve uma única paragem a meio, muito breve, dividindo o programa em dois grupos equilibrados de sete peças.
 
A primeira parte abriu com a sonata Anunciação para violino e contínuo de Heinrich van Biber e prosseguiu com um conjunto de peças vocais cujos textos abordam o sofrimento da mãe de Cristo. Duas dessas peças são canções de embalar que associam a doce ternura da mãe que adormece o filho à terrível antevisão do seu futuro sofrimento.
 
A mais expressiva destas canções, a canzonetta Hor ch’è tempo di dormire, de Tarquinio Merula, é construída sobre um baixo ostinato de apenas duas notas que formam o intervalo melódico de segunda menor. Este ostinato evoca o movimento de embalar e representa a dualidade de emoções presentes na peça. O arranjo de Pluhar intensificou este contraste através da ilustração sonora das partes do texto que descrevem a crueldade da crucificação (o órgão, reforçado pela percussão, executou harmonias sombrias no registo grave).
 
A segunda parte começou com a peça O gloriosa domina (al modo di ecco), de Ignazio Donati, que explorou a técnica de imitação entre a cantora e o cornetista. Este deslocou-se para o coro alto da igreja, reforçando assim o sentido cénico deste recurso expressivo. O contraponto entre os dois solistas reflectiu a perfeita coordenação rítmica e equilíbrio de intensidades.

O recurso ao princípio do baixo ostinato percorreu a maior parte das peças do concerto, incluindo as peças instrumentais. De entre estas, destacam-se duas Ciacconas e uma Passacaglia, cuja interpretação aliou o virtuosismo instrumental ao carácter de dança que está na origem destas peças. A violinista explorou uma grande variedade de recursos técnicos e expressivos demonstrando assim um domínio total do princípio de variação, fundamental na execução deste tipo de obras.

A subtileza da gestão dos recursos tímbricos é uma característica que se evidenciou ao longo do concerto em vários aspectos: a inclusão de cinco peças instrumentais num programa predominantemente vocal e sacro, o recurso a instrumentos solistas diversificados (violino, corneto e saltério), as intervenções do percussionista (que toca apenas em algumas peças) e a frequente alternância do órgão positivo com o cravo.

A soprano Nuria Rial teve um desempenho excelente ao longo de todo o concerto, aliando elevada capacidade técnica, enorme poder expressivo e grande maturidade estilística. Como já foi referido, os restantes solistas (violinista, cornetista e salterista) tiveram um desempenho idêntico.

 
Do primeiro ao último momento, o concerto apresentou qualidades musicais que coroaram de forma superlativa a 36ª edição do Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim.

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