Vai sempre ser preciso trair alguém

Belém é realizado por um israelita, Omar por um palestiniano – os dois filmes, que chegam a Portugal ao mesmo tempo, centram-se numa figura trágica do conflito israelo-palestiniano, o informador. O realizador Yuval Adler fala-nos sobre a sua história de um homem condenado a trair.

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Belém, do israelita Yuval Adler
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Omar, do palestiniano Hany Abu-Assad

No centro de Belém há uma relação que só pode acabar em tragédia. O realizador israelita Yuval Adler resume-a ao Ípsílon fria e objectivamente: “É uma relação de intimidade, real, não fingida: o agente secreto gosta realmente do informador, mas acaba por ter de o explorar e, eventualmente, deixar que o matem.”

Para os serviços secretos israelitas, esta é, de longe, a forma mais eficaz de conquistar um informador. É um trabalho de muito tempo, a construção de uma amizade, de uma relação de confiança. Só assim se conseguem informações úteis e relevantes. “Se estabeleceres uma relação com base em ameaças e intimidação, eles não gostam de ti e não vão querer trabalhar para ti”, explica Adler, numa conversa telefónica a partir dos Estados Unidos.

Em Belém – filme de estreia do israelita –, Razi é o agente dos serviços secretos e Sanfur é o irmão mais novo de um importante militante palestiniano, Ibrahim. Logo no início, há um atentado em Israel, e a missão de Razi é perceber, através de Sanfur, quem são os responsáveis. Mas isso implica – e Razi sabe-o melhor do que ninguém – que Sanfur acabe por trair os amigos, a família e aquilo em que acredita.

“Não é uma relação condenada a falhar, é assim que funciona”, diz Adler. “Os agentes contam exactamente isso: ‘Encontro uma pessoa, torno-me realmente próximo e amigo dela, e ela faz aquilo que eu preciso que ela faça.”

Tudo assenta em algo tão frágil como a confiança – sendo que aqui é uma confiança que nasce inevitavelmente de uma traição. “Geralmente, o fim trágico é para o informador, não para o agente. Ou é descoberto, ou decide deixar de ver o agente, ou, o que acontece com muitos deles, acaba por ser levado para Israel e colocado numa espécie de programa de protecção de testemunhas.”

A vontade de fazer este filme surgiu quando Adler viu um vídeo sobre o fim trágico de um desses informadores, morto a tiro na Palestina, e decidiu que queria perceber melhor o que leva alguém a tornar-se informador e como é que as coisas funcionam de um e do outro lado. Para isso precisava de alguém que conhecesse profundamente a realidade palestiniana e convidou o jornalista árabe-israelita Ali Waked, com muitos anos de experiência de cobertura do conflito israelo-palestiniano, para escrever o guião com ele.

Mas, para construir a história, era também fundamental perceber exactamente como é que as coisas funcionam do lado israelita. Ao fim de algum tempo, Adler conseguiu que um agente acedesse a contar-lhe. Mas há detalhes que não são revelados. Como é que um agente é preparado psicologicamente para lidar com uma situação destas? “Não sei, eles não me revelaram isso. Presumo que há um treino especial, mas não sei. Na aproximação ao informador, primeiro há uma reunião, depois outra, talvez lhes peçam primeiro uma coisa pequena e pouco e pouco vão aplicando uma estratégia de sedução. Pode começar por um favor – no filme, Razi ajuda à libertação do pai de Sanfur –, mas com o tempo a relação transforma-se noutra coisa”.

Sanfur é muito jovem – tem 17 anos, tinha 15 quando foi recrutado –, vive na sombra do irmão, um líder local admirado por todos, e sente algum conforto na atenção que recebe de Razi, sempre disponível para ouvir os seus problemas e para ajudar a resolvê-los. Mas claro que, pelo irmão, Sanfur está disposto a trair Razi. Ao mesmo tempo, Razi é pressionado pelos seus colegas dos serviços secretos e sabe que está a empurrar o palestiniano para uma situação sem saída. Sanfur não tem escolha – vai ser sempre preciso trair alguém.

A ideia mais generalizada é que os informadores são recrutados através de chantagens ou ameaças, ou então que aceitam trabalhar pelo dinheiro. Mas Adler insiste: “Os que são realmente importantes são os que vêm através deste tipo de relações. Os outros são pequenos informadores. Sanfur é irmão de um militante, por isso é muito importante.”

 

Pontos de vista

A distribuidora Alambique, responsável pela vinda do filme para Portugal, trouxe ao mesmo tempo um olhar sobre este mesmo tema, mas do outro lado: Omar, filme do palestiniano Hany Abu-Assad (que fez também O Paraíso, Agora!, de 2006, sobre dois palestinianos que se preparam para um ataque suicida). Em Omar, que conquistou o Prémio Especial do Júri na secção Un Certain Regard do Festival de Cannes, filma também uma história de traição, à volta do muro que separa Israel da Palestina, e palestinianos de palestinianos.

Há igualmente um agente israelita (e também aqui vemos algumas das técnicas de aproximação, como a de se fazer passar por palestiniano para conquistar a confiança do seu interlocutor, que acaba por falar mais do que deve e fica vulnerável à chantagem), e um grupo de amigos palestinianos, um dos quais é apanhado, preso e recrutado para colaborar.

Abu-Assad explica, num dos textos do dossier de imprensa, que há uns anos estava a beber chá em Ramallah com um amigo que lhe contou como tinha sido abordado por um agente do governo com informação pessoal e que esse segredo foi usado para o obrigar a colaborar. Dessa conversa nasceu a ideia de contar em filme uma história sobre agentes e informadores.

É, contudo, uma história muito diferente, e que assume um ponto de vista palestiniano – enquanto Adler tem dito repetidamente que quis fazer um filme que contasse uma história humana, que mostrasse os dois lados, e que não defendesse um em particular.

Quando lhe dizemos que, como já aconteceu noutros países, os dois estão em cartaz ao mesmo tempo em Portugal (Omar estreou no dia 17, Belém acaba de estrear), Adler pede para esclarecer que o seu filme foi feito primeiro. “Nós já tínhamos mostrado o filme antes de ele começar a filmar. Omar foi concebido e filmado muito mais tarde." Quanto à coincidência do tema, comenta que “é muito comum, por exemplo com o cinema americano, em que aparecem quase ao mesmo tempo dois filmes sobre o mesmo assunto”.

Hany Abu-Assad não concorda com a afirmação de que Belém é equidistante. “Eu condeno a ocupação do início ao fim do meu filme”, disse ao The New York Times, sublinhando que o filme de Adler reflecte “o ponto de vista israelita”. O realizador israelita, que garante que Belém o ajudou a tornar-se mais consciente da forma como os palestinianos vêem o conflito, afirma por seu lado que “ tanto pessoas de direita como de esquerda gostaram, e as que não gostaram são as que têm uma posição ideológica muito marcada, e que acham que um lado é mau e o outro é bom”.

Acontece também que os dois filmes chegam às salas na altura em que o Exército israelita está a lançar uma esmagadora operação militar em Gaza, e que os jornais estão cheios de imagens de destruição daquele território e de civis mortos. Adler tem dito em entrevistas anteriores que acredita que o seu é um filme que, apesar de ter um final trágico, mostra que há esperança de uma saída para o conflito. Perante o que se está a passar neste momento em Gaza, mantém essa esperança?

“Não sei… Na Cisjordânia não vemos isto [o cenário de Gaza]. Claro que o que se está a passar não é bom, mas tenho dificuldade em responder a essa pergunta, a questão é demasiado complexa. Mas claro que só podemos ter esperança, é a única maneira de resolvermos esta situação, e a maioria das pessoas de ambos os lados quer isso.”

Há, contudo, quem tenha achado que Belém não traz qualquer esperança. Tal como Omar, que conta a história de vários dilemas e uma traição (embora esta não aconteça exactamente onde se espera). Mas se no filme palestiniano a personagem que trai talvez tivesse a possibilidade de fazer uma escolha diferente, em Belém não há saída para Sanfur. Seja qual for a escolha que faça, estará sempre a trair alguém. Resta-lhe apenas uma margem ínfima de liberdade: a de escolher quem vai trair.  

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