Uma Sherazade para distrair a morte no gueto de Theresienstadt

Claude Lanzmann regressa à Shoah em Le Dernier des Injustes, um acontecimento exibido fora de competição no Festival de Cannes. Por aqui passa um sopro de testamento.

Benjamin Murmelstein sabe exactamente a mitologia que tem de convocar: vê-se a si próprio como Sancho Pança, o sentido prático por oposição à luta de D. Quixote contra os moinhos de vento. E como Sherazade a entreter a morte com as suas histórias, a nunca poder parar de contar histórias.

Entre o final de 1944 e 1945, Benjamin Murmelstein, grande rabino de Viena durante a Ocupação, foi nomeado por Adolph Eichmann, que liderava a logística de extermínio do regime nazi, como o “ancião” do Conselho Judeu do gueto de Theresienstadt, cidade a oitenta quilómetros de Praga. Era uma invenção perversa do regime, o Conselho Judeu, já que obrigava os responsáveis de um gueto a executarem as ordens alemãs, como a fazerem a lista dos deportados para o extermínio. Obrigavam-os a colocarem-se na situação dos que pactuavam. Mais perverso ainda num “gueto modelo”, que foi a forma como os nazis venderam Theresienstadt ao exterior, aos americanos e à Cruz Vermelha, e aos judeus alemães: como “oferta” do Führer a uma elite em troca da doação dos seus bens a um fundo gerido por Eichmann. Chegou a ser feito um filme, para propagandear a cidade em que os judeus viveriam sob a benevolência do Terceiro Reich. Foi realizado por um prisioneiro de Theresienstadt. O elenco e o realizador foram a seguir enviados para Auschwitz. 

Era, na verdade, um campo de morte, antecâmara da deportação para o gás de Auschwitz. Nas palavras do realizador Claude Lanzmann, que sabe do que fala já que uma parte da sua vida foi dedicada à história do Holocausto (que terá de ser feita com a colossal fixação da memória que constituem os seus documentários Shoah, de 1985, e Sobibor, Oct 14, 1943, 4pm, de 2001), a experiência deceptiva e o logro de Theresienstadt, na panóplia de instrumentos de crueldade e de mentira que o regime nazi utilizava para a Solução Final, foi o “clímax da crueldade”. Lanzmann regressa à Shoah em Le Dernier des Injustes, um acontecimento, exibido fora de competição, no Festival de Cannes. 

E regressamos nós, aqui, a esse Benjamin Murmelstein, que como último “ancião” do Conselho Judeu de Theresienstadt se viu como Sherazade a desviar as atenções da morte. A verdade é que dos membros dessa criação cruel que foi o Conselho Judeu muitos foram deportados, exterminados, houve os que se suicidaram, por não aguentarem as contradições a que os forçavam, e os que, como Benjamin, foram acusados por antigos prisioneiros, no final da guerra, de colaboração, de terem negociado com o diabo. Julgado em 1946, depois considerado inocente, Murmelstein retirou-se para Roma. Onde Claude Lanzmann o entrevistou para Shoah. Esse material, que não ficou na versão final desse monumento, foi entregue ao Museu do Holocausto em Washington. É agora a base de Le Dernier des Injustes

Lanzmann explica hoje a razão por que não incluiu esse material em Shoah. Basicamente: o caminho desse filme de nove horas em direcção à saturação trágica levou o realizador a optar por uma outra história, a de um membro do Conselho de Judeus do gueto de Varsóvia que se suicidou em 1942 no primeiro dia das deportações para Treblinka. A figura de Benjamim Murmelstein, se bem que dotada de tragédia (foi ele que se autonomeou “o último dos injustos”, chamando a si o olhar e as acusações dos outros), é uma figura de outra vibração e de outra natureza. Sobreviveu. Quando foi julgado, alguém lhe perguntou “como é que você está vivo?”, com se atrevia a ter sobrevivido, ao que ele respondeu: “E você, como é que se permite você estar vivo?”.


O fim de uma odisseia

Lanzmann fez-lhe à sua maneira a mesma pergunta. Quando o entrevistou em 1975, acreditava na inocência de Murmelstein e reforçou-o esta semana, em entrevista ao diário francês Libération: “Quis mostrar [com o filme] que estes supostos colaboradores judeus não eram colaboradores, eles nunca quiseram matar judeus, não partilhavam a ideologia dos nazis, eram uns infelizes sem esperança”. Annete Wieviorka, historiadora e especialista na história dos judeus no século XX, dizia também ao Libération: “A grande perversidade do nazismo foi confiar a administração de uma população aos que estavam destinados a ser assassinados.”

Mas em 1975 Lanzmann, que é um interrogador implacável, apertou com ele, por ter sobrevivido, pela suspeita que se abatia de pacto com o diabo. Murmelstein respondeu-lhe com o Sancho Pança e com a Sherazade; que era preciso sentido prático no meio da devastação, que era necessário contar histórias aos nazis, dar-lhes a ilusão de que decidiam tudo e eram obedecidos, que era preciso isso para Theresienstadt continuar a existir, que era preciso salvar-se para salvar o gueto — enquanto houvesse fome, doença, loucura, era sinal de que o gueto continuava, que não era exterminado, que não eram exterminados, era sinal de que a vida, alguma(s) vida(s), podia continuar.

Murmelstein tinha a ambição, e Le Dernier des Injustes abraça-o, porque é esse o plano final, Lanzmann a abraçá-lo, por ter sido, como todos os outros do Conselho Judeu, “marioneta” dos nazis e simultaneamente manipulador dos fios. Uma figura assim não cabia em Shoah. A ela regressa para encerrar uma história e para encerrar a sua história. Uma das diferenças entre Shoah e Le Dernier des Injustes é que, ao integrar também imagens de Lanzmann hoje — a ler excertos do livro que Murmelstein escreveu sobre o gueto, Terezin: il ghetto-modello di Eichmann, a atrever-se pela “insustentável beleza” dos locais e edifícios que estão ensopados em sinistro —, dá protagonismo aos gestos de um homem de 87 anos já com dificuldades em subir as escadas do seu caminho. Por essa vibração de tenacidade e fragilidade (física), simultaneamente, a “respiração” de Lanzmann em 1975 e Lanzmann hoje, há um sopro de “testamento” em Le Dernier des Injustes.

Há dias, Lanzmann encontrou-se com o presidente do júri da competição, Steven Spielberg. Terão estado a conversar. Quando A Lista de Schindler estreou em 1994, Lanzmann indignou-se, já que Spielberg transpunha o “anel de fogo” que segundo ele está erecto em redor do Holocausto, como uma fronteira que não se pode transpor. “A ficção é uma transgressão. Estou profundamente convencido de que há uma proibição de representação [do Holocausto] ”. Não se sabe do que falaram, mas é o fim de uma odisseia.


 
 
Corrigido o nome de Adolf Eichmann.

 
 

 
 
 
 

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