Uma ópera para redescobrir il divino boemo

Depois de ter passado mais de 200 anos adormecida na Biblioteca da Ajuda, a partitura da ópera Armida, do compositor checo Josef Myslivecek, ganha vida com a Orquestra Metropolitana de Lisboa.

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Nesta estreia moderna da Armida, a Orquestra Metropolitana de Lisboa propõe uma versão semi-encenada da partitura de Josef Myslivecek NUNO FERREIRA SANTOS

Com uma carreira de sucesso no século XVIII, incluindo a representação das suas óperas nos principais teatros italianos, o compositor checo Josef Myslivecek (1737-1781) acabaria por cair no esquecimento durante quase 200 anos, mas nos últimos tempos o seu legado tem sido objecto de um renovado interesse a nível internacional.

Este movimento de redescoberta da obra de il divino boemo, designação pela qual o prolífico músico oriundo da região da Boémia ficaria conhecido, tem sido também partilhado pela Orquestra Metropolitana de Lisboa, que interpretou algumas das suas peças instrumentais na última temporada e que se lança agora num ambicioso projecto: a estreia moderna da ópera Armida, cuja partitura manuscrita se encontra na Biblioteca da Ajuda e que terá lugar nos dias 22 e 23 (às 21h), no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém. A direcção musical é de João Paulo Santos, a encenação cabe a Luca Aprea e os figurinos são da autoria de José António Tenente.

Nascido em Praga numa próspera família que se dedicava à moagem de cereais, Myslivecek frequentou o curso de Filosofia antes de se dedicar à música a tempo inteiro. Em 1763 viajou para Veneza a fim de estudar com Giovanni Pescetti e em 1771 era admitido na prestigiada Academia Filarmónica de Bolonha, cidade onde conheceu o jovem Mozart e o seu pai, Leopold Mozart, que descreve Myslivecek numa das suas cartas como uma personalidade “plena de fogo, espírito e vida”. Mozart chegou a apropriar-se de vários motivos musicais de Myslivecek nas suas obras, sendo o caso mais emblemático o arranjo da ária Il caro mio bene, precisamente da ópera Armida, transformada através de um novo texto na famosa canção Ridente la calma, KV 152 (K. 210a).

Não sendo a razão principal, este episódio pesou na escolha da ópera Armida por Pedro Amaral, actual director artístico da Metropolitana, para uma recuperação moderna. “Trata-se de uma obra muito especial que apresenta traços que se ligam à Reforma da ópera empreendida por  Gluck (no sentido de criar maior fluidez e coerência dramática), mas também partilhada por outros compositores. Musicalmente, está a par das melhores óperas de Salieri ou mesmo de Cimarosa”, explica ao Ípsilon. “Outro aspecto que pesou na escolha foi o facto de a fonte mais importante se encontrar na Biblioteca da Ajuda. Há outro manuscrito na Biblioteca Nacional de França, mas está incompleto.” A edição moderna foi realizada pelo musicólogo Rui Campos Leitão e Pedro Amaral fez questão de reunir um elenco de cantores portugueses —  “uma geração maravilhosa que não existia há 20 anos” —  formado por Joana Seara, Carla Caramujo, Eduarda Melo, Sónia Alcobaça, Leila Moreso e Marco Alves dos Santos. No plano vocal, participa ainda o Coro Voces Caelestes.

Detentora de uma imponente colecção de ópera italiana setecentista, a Biblioteca da Ajuda é também o principal repositório das óperas de Myslivecek, contando com 16 dos seus títulos.  No entanto, não há notícia de nenhuma delas ter sido representada em Lisboa. O maestro João Paulo Santos levanta a hipótese de terem sido enviadas pelo próprio compositor como “uma espécie de curriculum vitae, na expectativa de uma possível contratação pela corte portuguesa, que tinha a justa fama de pagar avultadas somas  aos seus músicos”. Um exemplo recente era o de Jommelli, falecido em 1774, beneficiário de um vantajoso contrato com a corte de D. José. É um cenário plausível, mas as partituras de Myslivecek poderiam também facilmente ter chegado à capital portuguesa no âmbito da regular aquisição de música pela Casa Real, processo nesta época supervisionado pela Rainha D. Maria I, conforme fica claro na correspondência trocada entre o director dos teatros reais e os embaixadores em Itália, que se guarda na Torre do Tombo. Por exemplo nas missivas enviadas nos inícios da década de 1780 a D. Diogo de Noronha, ministro plenipotenciário em Roma, são solicitadas oratórias, cantatas, serenatas, óperas e música sacra e é igualmente registada a chegada das partituras a Lisboa. “Recebi por via de João Piaggio [Cônsul em Génova] o Caixote da Muzica, que V. Exa. mandou, a qual passando logo ao poder de Suas Altezas a examinaram com a sua costumada curiosidade”, escreve o director dos teatros reais em 19 de Março de 1783.

No labirinto
Estreada em 1779 no recém-construído Teatro Alla Scala de Milão, a Armida de Myslivecek recorre a um libreto de Gianambrogio Migliavacca que tem por base um outro, homónimo, escrito pelo francês Philippe Quinault em 1686 para Jean-Baptiste Lully. Por sua vez, Quinault parte do poema de Torquato Tasso La Gerusalemme Liberata (1581), que apresenta uma versão ficcionada de um episódio da Primeira Cruzada. O enredo centra-se no infortunado amor da feiticeira Armida, princesa herdeira do reino da Síria, por Rinaldo, o mais afamado cavaleiro do exército cristão. A obra de Tasso esteve na base de numerosas óperas, incluindo composições da autoria de Monteverdi, Lully, Händel, Jommelli, Haydn, Gluck e Rossini.

A preparação da partitura de Armida trouxe  várias surpresas ao maestro João Paulo Santos. “A primeira foi o facto bizarro de ser um libreto escrito um século antes em francês que depois é traduzido para italiano. No entanto, por causa da Armida de Gluck, baseada no mesmo libreto, percebi que a escolha poderia ter sido uma solução para fugir ao espartilho dos libretos de Metastasio”, explica. “Myslivecek, porém, foi bastante mais modesto. Enquanto Gluck faz um fogo-de-artifício de formas não convencionais, ele transformou tudo o que era complicado do ponto de vista formal em recitativos e deixou as árias no lugar convencional.”

O maestro sublinha que esta ópera é típica de uma época de transição. “O estilo ainda não está definido, encontramos elementos do Barroco e elementos que só vão ser completamente desenvolvidos em pleno Classicismo. Contudo, à medida que a ópera avança, a música torna-se mais moderna. As primeiras árias são mais barrocas, mas os sentimentos inflamados do par principal parecessem ter inspirado Myslivecek a escrever música mais moderna.” Pelo mesmo motivo, o encenador Luca Aprea acha que a “Armida protagonista e a própria ópera são como irmãs”, pois a peça vai-se desenvolvendo musicalmente tal como a personagem principal em direcção a uma maior clareza.

Uma vez que a ópera incluía secções de bailado (cuja música, escrita por outro compositor, se perdeu)  falta a peça orquestral final no manuscrito da Ajuda. “Ainda pensámos acrescentar música de outra ópera, mas tendo em conta que a sua função era apenas cénica e esta é uma versão semi-encenada, resolvemos deixar a ópera sem fim”, diz João Paulo Santos. “Não havendo fim, decidiu-se também suprimir o princípio, ou seja, a Abertura instrumental. Achámos que podia ser bom para o nosso espírito moderno entrar logo na acção, até porque o libreto é muito bom. Ao contrário do que sucedia com Metastasio, não há nenhuma segunda intriga no libreto, tudo gira em torno de Armida e Rinaldo.”

O fascínio pelo libreto é partilhado por Luca Aprea, que resolveu pontualmente jogar com as diferentes fontes literárias. “No segundo acto, Quinault inventou uma cena em que Ubaldo e o Cavalier Danese procuram Rinaldo. No caminho encontram os espectros das suas amantes, episódio que resulta de um feitiço de Armida e que era pretexto para uma cena espectacular, com carácter de intermezzo. Fui verificar o que Tasso fazia neste ponto e o que acontece é a aparição de um papagaio com uma mensagem muito sedutora para um cristão, que o incita a aproveitar ao máximo a vida terrena. Como tal resolvi transformar os espectros das amantes em papagaios."

No programa fala-se de uma versão semi-encenada, mas Aprea explica que a sua proposta vai mais longe. “Aproveito as vantagens e deixo de lado as limitações.” Nesta perspectiva, criou um dispositivo cénico que é uma espécie de espiral inclinada, onde tudo se passa. A orquestra faz uma contra-espiral no lado oposto. “É uma tentativa de reproduzir a ideia de um labirinto, não tem uma porta clara, é um sítio onde nos podemos perder. Procurei um cenário que possa funcionar a par com a música e com o canto. Ao serem obrigados a estar sobre um plano inclinado, os cantores mudam automaticamente a atitude, alteram-se as relações de equilíbrio. Não sinto falta da dimensão figurativa, preciso de um cenário que faça música, não que conte uma história.”

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