Uma obra esmagadora

A história dos campos de concentração nazis, numa obra esmagadora. Mais do que pela dimensão, pela sua qualidade ímpar.

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KL. A História dos Campos de Concentração Nazis permite-nos conhecer os caminhos que, há 70 anos, vitimaram mais de seis milhões de seres humanos MICHAEL ST. MAUR SHEIL/CORBIS

KL não é um livro igual a centenas de outros que todos os meses são publicados sobre o Holocausto e que, sobretudo este ano, por ocasião do 70.º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial, irão encher os escaparates das livrarias.

Como o subtítulo indica, KL assume-se como um livro de História ou, nas palavras do seu autor, de “história panóptica”. Por isso, dele — e da imensa bibliografia que o suporta — estão ausentes referências literárias ou considerações filosóficas sobre os campos de extermínio (que o autor descarta como “frequentemente redutoras”). Trata-se, por outro lado, de um livro sobre a história dos campos de concentração nazis, geridos pelas SS, não de uma obra que visa abarcar globalmente o Holocausto ou sequer a totalidade do sistema carcerário do Terceiro Reich. 

É esta admirável honestidade intelectual do autor, a par do seu colossal trabalho de pesquisa, desenvolvido ao longo de vários anos em dezenas de arquivos de todo o mundo, que permite uma clara identificação do tema deste livro, não gerando equívocos em seu redor. Aliás, Nikolaus Wachsmann, professor do Birkbeck College da Universidade de Londres, é, nitidamente, um historiador profissional, dos pés à cabeça, que pretende tudo menos criar uma obra sensacionalista ou avançar teses polémicas. Ao contrário do que sucedeu com outras abordagens do tema, como A Indústria do Holocausto, de Norman Finkelstein, ou Os Carrascos Voluntários de Hitler, de Daniel Goldhagen, o livro de Wachsmann não sustenta uma “tese” nem fica refém da sua defesa. Descreve um sistema, composto por uma rede tentacular de 27 campos principais e mais de 1100 campos-satélites, e a dinâmica da sua trajectória ao longo dos anos, com avanços e inflexões, num processo de “radicalização cumulativa” (Hans Mommsen) que, no entanto, não deve obscurecer as transformações profundas que se verificaram na estrutura concentracionária nazi e até mesmo no interior de cada um dos campos. “A constante principal dos KL foi a mudança”, escreve o autor no prólogo, sendo essa mudança que este livro procura desvendar. As primeiras páginas são elucidativas: o campo de Dachau é-nos apresentado em três momentos diferentes — Março de 1933, Agosto de 1939 e Abril de 1945 — para que possamos perceber a sua sinistra metamorfose. Nos primeiros tempos, os detidos (comunistas de Munique, na sua maioria) achavam toleráveis as condições do campo, onde à chegada lhes eram servidos pão, chá e salsichas. Um deles, Erwin Kahn, escreveu à mulher dizendo-lhe que tudo corria bem por ali. Algumas semanas depois, era abatido pelas SS, a quem entretanto fora confiada a responsabilidade pelo campo. Mesmo assim, em 31 de Agosto de 1939, na véspera da eclosão da guerra, registavam-se poucas mortes em Dachau. Muito diferente será o cenário que os Aliados encontrarão na Primavera de 1945: por toda a parte se viam cadáveres esfacelados, corpos amontoados, sobreviventes esqueléticos. 

Norteada por uma dupla preocupação — fornecer uma visão integrada dos KL mas salientar a sua diversidade —, esta obra é apresentada, em simultâneo, como pioneira e definitiva. O paradoxo é aparente e aquela afirmação justifica-se, não devendo causar escândalo entre todos quantos admiram, e com razão, o monumental tour de force de Raul Hilberg, The Destruction of the European Jews, publicado em 1961. Em confronto com o texto seminal de Hilberg, KL é “pioneiro” no sentido em que tem um objecto preciso e delimitado, como atrás se disse: a história dos campos de concentração geridos pelas SS e não o Holocausto no seu todo. Por outro lado, o autor beneficiou — como, aliás, o reconhece abertamente — de um conjunto documental só acessível a partir dos anos 80 e 90 e, bem assim, da gigantesca produção bibliográfica alemã gerada desde então. Quanto a tratar-se de um livro “definitivo”, é algo que só o decurso do tempo o poderá dizer. De qualquer modo, tem por base um trabalho de investigação de tal modo exaustivo que dificilmente será possível igualá-lo, pelo menos nos tempos mais próximos. Além da esmagadora documentação de arquivo, não há praticamente falhas ou omissões na bibliografia secundária. Poderia, quando muito, apontar-se a ausência do relato memorialístico de Shlomo Venezia, muito importante para a compreensão do terrível labor dos Sonderkommando em Auschwitz, e a entrevista de Gitta Sereny a Franz Stangl, o comandante de Treblinka, ambos publicados em Portugal. É certo que Treblinka, como veremos, não integra o objecto deste volume; ainda assim, seria importante comparar o que aí se passava com a evolução do ocorrido em Dachau ou Auschwitz. Outra omissão que não se compreende (mas esta, de tão gritante, poderá dever-se a uma falha de atenção do autor destas linhas, já que estamos perante uma obra densa, de mais de 850 páginas, com milhares de dados) é a ausência, na bibliografia final, da “autobiografia” de Rudolf Höss, publicada com prefácio de Primo Levi e, como se sabe, escrita enquanto aquele aguardava o julgamento que ditaria a sua execução por enforcamento no preciso lugar onde foi comandante — o Konzentrationlager de Auschwitz —, a poucos metros da casa onde, na recordação da sua mulher, a família passara tempos radiosos, de felicidade pura. 

Além do tema, a dimensão da obra poderá afastar alguns leitores. Para os que pretendem não mais do que uma síntese introdutória ao Holocausto, existem outros livros, de que se pode destacar um, modelar: Der Holocaust, de Wolfgang Benz, traduzido em várias línguas (mas não em Portugal…). Em contraste, os que quiserem mergulhar ainda mais fundo nesta realidade sombria têm ao seu dispor, por exemplo, os cinco compactos volumes de Auschwitz, 1940-1945, uma obra organizada por Waclaw Dlugoborski e Franciszek Piper e publicada pelo Museu de Auschwitz-Birkenau, com tradução inglesa. Existem ainda duas enciclopédias, com contribuições de mais de 150 historiadores de todo o mundo, uma das quais com 4.100 páginas. Ou, para fim de conversa, os 22 volumes dos Archives of the Holocaust, editados por Henry Friedlander e Sybil Milton entre 1990 e 1995. 

KL

 é, como se disse, um livro que pretende situar-se à margem, ou acima, das querelas que envolvem negacionistas, defensores da ideia da singularidade absoluta do Holocausto face a outros genocídios (a “

Holocaust uniqueness

”, muito popular em certos meios judaicos), partidários das teses “intencionalistas” ou “funcionalistas” de explicação da Shoah, etc. Wachsmann descreve, de forma minuciosa e com um rigor extremo, a evolução dos campos de extermínio, mostrando, por exemplo, que a abertura de Dachau — a 22 de Março de 1933 — ocorreu menos de dois meses após a nomeação de Hitler como chanceler do Reich, sendo, pois, muito anterior ao início da guerra. Inscrevia-se numa lógica que começa a desenhar-se nas guerras coloniais de finais do século XIX e princípios do século XX e que tem o seu apogeu após a Primeira Guerra e, nos anos 20 e 30, com o Gulag. A prudência de Wachsmann leva-o, contudo, a dizer que os nazis tinham um notório “interesse” pelo terror soviético mas que este não teve uma “influência” nos campos de extermínio criados pelos alemães. Não se tratando propriamente de uma afirmação ambígua, é necessário estar atento às subtilezas de linguagem do autor, que ora afirma que “o parente mais próximo dos campos de concentração SS encontrar-se-ia provavelmente na União Soviética de Estaline” como, logo a seguir, realça as profundas diferenças entre os presos do NKVD e os das SS, concluindo que “o regime nazi não se inspirou no Gulag em nenhum aspecto de monta”. Não há qualquer contradição entre as duas afirmações. A estatística, de resto, é inequívoca: 90% dos presos do Gulag sobreviveram, enquanto nos KL terá sobrevivido menos de metade dos presos registados. Porém, e não se tratando de um problema de “contabilidade moral” (para usar uma expressão de Saul Bellow, noutro contexto), refira-se, a propósito, que os detidos nos campos do NKVD foram muito mais do que os presos na teia concentracionária das SS.

Mais problemática é a distinção entre os campos de trabalho e os campos de extermínio, tendo Wachsmann optado por se centrar em exclusivo nos complexos prisionais administrados directamente pelas SS — o que o leva a excluir do seu livro o que se passou em Belzec, Sobibor ou Treblinka, já que estes, sendo tão-só campos de morte, não integravam a rede das SS. A opção de Wachsmann é compreensível, mas acaba por conferir ao seu livro um enfoque algo redutor e demasiado circunscrito; era importante, no mínimo, que fosse feita uma comparação entre os dois tipos de campos, até para que pudéssemos compreender melhor as particularidades daqueles que se encontravam sob a alçada directa de Heinrich Himmler e dos seus sequazes. Estes são apresentados como indivíduos especialmente imbuídos da ideologia nazi, em contraste com os restantes alemães. Colocando-se numa posição bastante distinta da de Daniel Goldhagen, Nikolaus Wachsmann duvida cautelosamente (“parece duvidoso”) que o povo alemão sufragasse o extermínio em massa dos judeus ou dos ciganos. Todavia, é o próprio que reconhece que, dos cinco a seis milhões de judeus que pereceram no Holocausto, somente 1,7 milhões perderam a vida nos campos das SS. A maioria morreu noutros lugares, abatida a tiro em valas e campos espalhados pela Europa de Leste ou gaseada em campos de extermínio específicos como Treblinka. Mas também nas “marchas da morte”, um tópico essencial que Goldhagen utiliza para sustentar a ideia de que os alemães foram “carrascos voluntários de Hitler”, e de que Wachsmann, aparentemente, discorda. 

O livro aborda os campos de concentração na dupla perspectiva das vítimas e dos perpetradores. Quanto às primeiras, Wachsmann afasta-se do retrato feito por Hannah Arendt, para quem o domínio absoluto das SS tinha extinguido a centelha da vida, reduzindo os presos a “marionetas macabras de rosto humano”. A realidade que KLapresenta, sem quaisquer intuitos revisionistas, é mais matizada e complexa. De facto, a partir de diversos relatos de vítimas, sabemos que estas mantiveram, apesar do horror circundante, uma pequena e limitada margem de acção e livre-arbítrio, movendo-se pelos campos, iludindo a vigilância dos guardas, lutando pela sobrevivência. O autor contesta — e, desta vez, de forma muito incisiva — a ideia de Bruno Bettelheim, o psicólogo que sobreviveu a Dachau e a Buchenwald, de que os judeus se dirigiram “como lemingues” para as câmaras de gás. No entanto, se é certo que houve gestos de resistência e até rebelião (como a destruição de um dos crematórios de Birkenau aquando da revolta de 7 de Outubro de 1944), o facto de Wachsmann se centrar no estudo dos campos de concentração das SS, onde os judeus nunca foram mais de 30% da população prisional registada, deveria levá-lo a ser mais contido nas apreciações gerais sobre o comportamento da população judaica, um faux pas que não é, de modo algum, típico deste historiador. 

Também entre os perpetradores Wachsmann conclui não existir um “criminoso típico”, ao contrário da imagem, que ainda persiste no nosso imaginário, dos guardas SS como indivíduos sádicos, destituídos de escrúpulos morais e de qualquer racionalidade. Entre os 60 mil funcionários dos campos das SS houve, naturalmente, atitudes muito diversas. E, provavelmente, o que ditou a variedade de comportamentos não foi o carácter de cada qual mas, de novo, a dinâmica do tempo. Nos alvores de Dachau, dois guardas SS auxiliaram um dos principais detidos, o comunista Hans Beimler, numa evasão espectacular, que só terminou em Moscovo e provocou sérios danos à imagem do Reich no exterior. Esse gesto, praticado em 1933, seria impensável anos depois. 

É esta acção do tempo que KL capta de forma exemplar. O livro tem uma outra qualidade. Ao contrário do que o título poderia sugerir, Wachsmann não fornece uma descrição impessoal e descarnada da estrutura dos campos e da sua evolução. Ao invés, toda a narrativa é construída a partir de casos concretos, com nomes e situações, escrita num estilo cativante e directo, o que torna apaixonante a leitura destas 800 páginas de tormentos e martírios. KL foi escrito para ser um best-seller mundial — e sê-lo-á, merecidamente. Como assinala o New York Times, abundam os episódios fascinantes: as lutas fratricidas entre Himmler e Göring; os primeiros ensaios de Zyklon B com presos soviéticos; as ligações entre os programas de eutanásia, na Alemanha, e os primeiros gaseamentos, na Polónia; o orgulho de Rudolf Höss nas matanças nas câmaras de gás de Auschwitz, um método muito mais “limpo” do que os fuzilamentos (Himmler era obcecado com a limpeza e a ordem nos campos, algo que, com o avolumar dos prisioneiros e com as mortes em massa, os comandantes não conseguiam garantir); e até o gesto terrível, mas altruísta, de alguns médicos de Auschwitz que matavam recém-nascidos para que as mães tivessem uma ínfima esperança de salvação. 

No mais recente romance de Martin Amis, A Zona de Interesse, um grupo de nazis discute em Auschwitz se a “Solução Final” fora arquitectada na célebre Conferência de Wannsee ou se, pelo contrário, este encontro de altos funcionários do Reich mais não fez do que concretizar uma decisão tomada muito antes, e a um nível muito mais elevado. KL, de Nikolaus Wachsmann, não responde directamente a esta questão mas como nenhum outro livro permite-nos conhecer os caminhos que, há 70 anos, vitimaram mais de seis milhões de seres humanos. Um livro avassalador. 

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