Uma Medeia atirada aos leões

Quinze anos depois, o Coliseu de Roma volta a abrir uma raríssima excepção: hoje, amanhã e depois há teatro na arena. E sangue também.

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Valentina Banci e Filippo Dini num dos espectáculos em Siracusa Tommaso Le Pera/Fundação INDA
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Maurizio Zivillica/Fundação INDA
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Da última vez que a vimos antes da passagem-relâmpago pelo Festival de Almada, onde na quarta-feira foi uma das hóspedes do Hotel da Bela-Vista de Ödön von Horváth, Valentina Banci estava sentada a beber um café e uma água com gás numa esplanada da península de Ortigia, o centro histórico de Siracusa, a umas horas de um banho de sangue. Foi aí, na cidade que antes de ser romana e siciliana foi grega – o belíssimo teatro da Antiguidade onde desde 1914 o Istituto Nazionale del Dramma Antico (INDA) organiza o seu Ciclo de Representações Clássicas data, de resto, dessa encarnação –, que Valentina se tornou a Medeia que a partir de hoje será pelo menos metaforicamente atirada aos leões. É ela, claro, a primeira a falar nisso: “Como vai ser no Coliseu de Roma? Oh, os leões vão comer-me.”

Certo, já não há leões no Coliseu de Roma. Mas também não há actrizes, salvo raras excepções. O precedente foi aberto há 15 anos, quando o programa das comemorações do Jubileu de 2000 incluiu um “projecto de reabertura cénica do Coliseu” e levou ao Amphitheatrum Flavium, como foi originalmente designado, um tríptico composto pelas inultrapassáveis tragédias do Ciclo Tebano de Sófocles (um Édipo Rei do Teatro Nacional de Atenas, uma Antígona do Centro de Arte Dramática de Teerão, e um Édipo em Colono do Habima, o teatro nacional israelita). E é agora retomado com a apresentação, por apenas três noites (segunda, terça e quarta, porque a multidão de turistas ao fim-de-semana tornaria a operação bem menos praticável), da Medeia de Séneca, na mesma encenação de Paolo Magelli que em Maio se estreou em Siracusa, e em que Valentina Banci teve o seu primeiro grande banho de sangue como animal de palco.

Ao contrário do Teatro Grego de Siracusa, onde o pai fundador da tragédia, Ésquilo, estreou pelo menos duas das suas peças no século V a.C., o Coliseu não é um teatro vivo – o futuro que teve como monumento mundialmente famoso (e como moeda de cinco cêntimos, já na era do euro) é a razão pela qual o seu regresso temporário ao passado de sala de espectáculos (ou, se preferirmos, pavilhão multiusos destinado ao entretenimento popular) é sempre um acontecimento. Mesmo que não à gloriosa escala dos tempos em que terá podido acomodar 80 mil espectadores (foram postos à venda, segundo o diário italiano La Repubblica, apenas 1300 lugares) e em que mesmo sem uma máquina de promoção moderna por trás ou merchandising associado era fácil fazer lotações esgotadas com concursos de gladiadores, caçadas, execuções, reconstituições de batalhas e teatro clássico.

O peso do lugar

Anunciada pelo ministro da Cultura Dario Franceschini no início de Junho, quando lançou perante a imprensa o concurso internacional para as obras de reconstrução da arena do Coliseu (que deverão tomar cinco anos e 20 milhões de euros), a operação Medeia é de novo, e tal como em 2000, uma co-produção com o INDA. Das três estreias deste ano no Ciclo de Representações Clássicas, esta, decidiu o instituto, era a mais transportável por ter de longe o elenco menos volumoso e a cenografia – de Ezio Tofffolutti, um companheiro de estrada de Paolo Magelli, que o conheceu na Volksbühne já pós-Bertolt Brecht, tal como aos monstros sagrados Heiner Müller e Christa Wolf, quando Berlim ainda era uma cidade dividida ao meio – menos problemática. Depois das considerações logísticas, houve o argumento passional (Séneca era o único romano dos três autores da 51.ª edição do ciclo, que também incluiu novas encenações da Ifigénia em Áulis de Eurípides e de As Suplicantes de Ésquilo).

Em Siracusa, onde foi atirada a plateias de seis mil pessoas por noite, Valentina Banci nunca sentiu o peso do número de espectadores, mas sentiu o peso do lugar. “Pensava que mudaria muita coisa e acabei por perceber que um espectador é tão assustador como seis mil. No Teatro Grego é mesmo o lugar que faz a diferença, porque tem uma importância histórica especial, não a escala esmagadora da plateia. E depois faz diferença a representação acontecer ao ar livre e começar ainda durante o dia: a luz do sol é muito menos confortável do que a escuridão de um teatro”, diz ao PÚBLICO.

Não haverá esse problema no Coliseu, onde o espectáculo começará sempre às 21h, mas haverá outros como o de os espectadores poderem estar lá mais pela experiência do que propriamente para ver o que uma cabeça como a de Paolo Magelli faz de uma das suas personagens favoritas de toda a História do teatro ocidental – e não pode ser uma Medeia qualquer, tem mesmo de ser a Medeia de Séneca, ainda que esta tenha muito ADN de Heiner Müller, que tal como Magelli também teve “um amor de morte” por ela, e 24 versos de Eurípides.

“O azar desta rapariga foi apaixonar-se por um imperialista que quis ir roubar o tosão de ouro. Para mim, esta história reduz-se a isso: uma mulher magnífica que se apaixona até à morte”, explica. Magelli também não perde muito tempo a sofrer com a possibilidade teórica de um dos monumentos mais icónicos do mundo acabar por esmagar um espectáculo que, embora criado originalmente para um teatro de seis mil lugares, se quis íntimo. “O Coliseu nem sequer é um lugar para se fazer teatro, é uma arena. Mas não vale a pena imaginar onde gostaríamos de estar: estamos onde estamos. Por mim, este espectáculo podia ser feito numa cozinha grande de uma casa particular: fizemo-lo numa pequena sala de ensaios, e nada na cenografia, a não ser o sal marinho que cobre o chão, é verdadeiramente imprescindível.” Pelo menos não tão verdadeiramente imprescindível quanto os actores. “Se conseguirmos que um espectáculo conte alguma coisa através deles, podemos tomar as decisões mais radicais do mundo.” Como esta de ir ao Coliseu e esperar que no fim não haja polegares virados para baixo.

 

 

 

 

 

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