Uma anatomia do Homem

Um autor essencial da literatura inglesa encontra finalmente edição em Portugal.

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Anatomia da Melancolia (1621) é um extenso tratado que Robert Burton, um académico e homem de letras do século XVII, ordenou de acordo com três “partições”, divididas em várias “secções”, por sua vez repartidas por diferentes “membros”, os quais abrem para um conjunto de “subsecções”, e assim sucessivamente.

A primeira das partições lida com as causas, os sintomas e os prognósticos da melancolia; a segunda é devotada à sua cura; e uma terceira centra-se em duas estirpes de melancolia que o autor pretendeu atomizar: a amorosa e a religiosa. Uma das edições de referência da obra (a chamada edição Shiletto) estende-se por 1300 páginas, e mesmo uma edição mais recente, que se poderia dizer de uso corrente, ocupa mais de 500 páginas, de mancha bem preenchida. Pelo que se percebe que, na antologia que a Quetzal publica entre nós, foi bem aplicado o termo Fragmentos, presente no subtítulo. Salvato Telles de Menezes fez uma escolha depurada (e que se imagina particularmente árdua), que restringe o extenso labor de Burton a 14 textos. O que se ganha em concisão perde-se em valor arquitectural, mas é possível que esse seja um dos únicos (se não o único) contra desta edição que, sem grande exagero, poderia considerar-se histórica. Inédito em Portugal, Burton, um autor essencial da literatura inglesa, encontra neste volume uma escolha contida, mas que dignifica esse nome em grande medida desconhecido.

Embora inscrita num sistema organizativo aparentemente (até certo ponto, realmente) tão rígido — “De acordo com o método que me propus seguir, tendo chegado até aqui com as causas secundárias, que são ingénitas em nós, devo tratar agora das externas” (p. 74) —, a 
Anatomia tergiversa de forma genialmente desorientadora — “Podia narrar outra história” (p. 139). O título, desde logo, é enganador. Mais do que um estudo sobre a melancolia, trata-se de um tratado sobre o ser humano, em toda a sua vastidão: uma “anatomia do homem” (Sir William Osler). Nesse sentido, a diversidade temática é constante ao longo do livro. Da História, e pseudo-História, à farmacologia — “Encontrei, em diferentes homens, diversas prescrições e métodos, alguns assumindo a cura de todos as doenças com um único medicamente aplicado de maneiras distintas” (p.102) —; do soturno desfile dos pecados à esfera sublime da beleza e do amor — “a causa mais comum do amor é a que provém da contemplação, que transmite ao coração os raios admiráveis da beleza e das graças agradáveis” (p. 125). Para avaliar a desproporção que pode assumir o tratamento dessas matérias, pense-se que um domínio como a psiquiatria (passe o anacronismo), que se suporia inevitável, recebe um tratamento relativamente escasso. Nem o elenco de autores convocados se isenta de perplexidade. Grande amante dos clássicos, Burton deixa de fora Ésquilo; exímio conhecedor da literatura inglesa, refere com notória infrequência o nome de Shakespeare — singelamente apodado de “um elegante Poeta nosso”. Só duas vezes surge, sem sombra de dúvida: numa alusão a Muito Barulho por Nada e em citação directa de Romeu e Julieta. Não surpreendentemente, tem preferência o douto Ben Jonson, “nosso principal poeta”.

Ainda que não estejam ausentes aspectos como o humor e alguma coloquialidade (o autor afirmou ter posto na escrita o mesmo cuidado que punha na sua conversação),Anatomia da Melancolia é, essencialmente, o trabalho de um erudito, que se pretende demarcar dos que considera “escrevinhadores iletrados”. Ao definir, por exemplo, “as espécies ou tipos de melancolia”, lança mão, numa só frase, dos nomes de Hipócrates, Galeno e Avicena (p. 14). Embora, a dada altura, se descrevesse a si mesmo a observar os corpos celestes com um telescópio, o seu saber era sobretudo livresco. Escarneceu da mezinha da sua mãe para a cura da sezão, a qual envolvia uma aranha e uma casca de noz — “Que tem a aranha com a febre?”, cortava ele, escrevendo em latim —, mas, ao ver a mesma receita caseira aprovada por dois autores clássicos, anuiu. O próprio Burton classificou a sua obra como um “cento [uma miscelânea]”, “coligido a partir de diversos escritores”. É significativo que a sua comédia latina, Philosophaster, fosse uma sátira ao falso conhecimento e à charlatanice científica. Como guardião da biblioteca do Christ Church College, da Universidade de Oxford, Robert Burton tinha acesso privilegiado a um vasto manancial de saber, mas pôde ainda beneficiar da então recente Biblioteca Bodleiana (ainda vedada aos alunos), da qual o seu amigo John Rouse era bibliotecário. O próprio Burton reuniu uma biblioteca de 1500 livros — número apreciável, no século XVII. O modo como lidava com as suas autoridades (como diria) revela-se também multiforme. Se, em certos passos, cita no corpo do texto, noutros fá-lo à margem da mancha tipográfica — por vezes, mesmo de ambas as formas, repetindo o expediente. Em alguns momentos, traduz as palavras dos outros — muitas vezes em paráfrases —; noutros, opta por não o fazer. Por outro lado, a memória substituiu, com frequência, a fonte impressa, o que gera não poucas imprecisões e ambiguidades. É o próprio quem descreve o seu ambiente de trabalho como uma “confusa companhia de notas”.

Em 30 anos, Anatomia da Melancolia conheceu seis edições. Nesse longo processo, o enorme tratado de Robert Burton passou das cerca de 300 mil palavras da primeira edição até às quase 500 mil da sexta. Como disse o seu contemporâneo Thomas Fuller: “Poucos livros de filologia na nossa terra tiveram, em tão pouco tempo, tantas impressões.” No tempo de Burton, “melancolia” era uma palavra de contornos difusos e conteúdo flutuante: corporal e mental, psicológico e médico. Desde a Antiguidade e a Idade Média que o conceito vinha adquirindo cambiantes, que se iam acrescentando e mesclando em resultado desses séculos de investigação e especulação. No Renascimento, o melancólico, omalcontent, possuía uma aura mítica, que associava aquele estado depressivo ao intelectual e ao artista. Homens de letras como os poetas Philip Sidney e John Donne, ou o polígrafo Thomas Browne, haviam sido acometidos por aquele mal. Burton teria escrito Anatomia da Melancolia com o objectivo de aliviar quantos padeciam da maleita, entre os quais ele próprio.

Já no século XVIII, Laurence Sterne foi um dos seus grandes admiradores; e tornou-se famosa, e especialmente citável, a frase do Dr. Johnson na qual este confessava que aAnatomia era o único livro que o fizera levantar-se mais cedo da cama. Algo que não o impediu de lhe apontar a sobrecarga de citações. Contudo, a verdadeira revitalização de Burton começou já sob influxo do romantismo. Ao longo do século XIX, publicaram-se mais de 40 edições e reedições do magno volume. Coleridge, Charles Lamb e Robert Southey foram, cada um a seu modo, apreciadores de Burton. Lamb, por exemplo, escreveu mesmo uns Curious Fragments Extracted from a Common-place Book, Which Belonged to Robert Burton. Byron, por seu turno, teve-o por um autor de grande mérito, e Keats ficou a dever-lhe a inspiração para o seu poema Lamia

 

 

 

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