Na sua vigésima terceira edição, o Festival Cistermúsica não deixa dúvidas sobre a qualidade das propostas musicais que apresenta.

Com uma programação exemplar, de claras linhas orientadoras e destacando-se a música antiga, o Cistermúsica não fecha portas ao potencial da região, reservando lugar para os artistas alcobacenses e valorizando diversos espaços, tanto dentro como fora do Mosteiro de Santa Maria, de que explora diferentes salas e onde decorre a maioria das actividades.

Dificilmente se imagina que algo pudesse ter corrido melhor no fim-de-semana de encerramento do festival (embora fosse desejável que mais algumas pessoas pudessem ter assistido aos concertos absolutamente fabulosos de que um interessadíssimo público usufruiu). Ambos provenientes de França mas com projectos muito distintos, os coros Les Éléments e Discantus confirmaram Alcobaça como local de peregrinação de amantes de música.

Nos seus programas, Joël Suhubiette junta música antiga e contemporânea, tomando como fio condutor temas conceptuais ou geográficos. A Portugal trouxe uma combinação de obras cantadas em línguas antigas da bacia do Mediterrâneo: latim (Tomás Luis de Victoria, António Chagas Rosa, Carlo Gesualdo, Antonio Lotti e uma canção do Livro Vermelho de Monserrat), hebraico (Salomone Rossi), aramaico (S. Rossi e Zad Moultaka), grego antigo (Alexandros Markeas) e árabe (Z. Moultaka). Além de surpreendente, a sequência musical resultou na perfeição, sendo a surpresa, aliás, um dos elementos que mais vida deu ao programa.

Alternando repertório antigo com contemporâneo, o agrupamento de dezanove vozes mistas (solistas de elevado nível) exibiu de forma inequívoca a sua versatilidade. O concerto abriu com sete vozes masculinas inesperadamente vindas detrás do público, com Barekhu de S. Rossi (1570-1630), a que se seguiu um vigoroso Kaddish, do mesmo autor, já com as vozes masculinas no palco montado no Refeitório do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça. Pendendo para o mundo actual com reminiscências vivas do passado, os Três fragmentos das bacantes baseados em Eurípides, do grego A. Markeas (1965), testemunharam o investimento do coro Les Éléments na criação musical, enquanto encomenda realizada pelo agrupamento em 2009.

Seguiu-se a incontestável polifonia de Victoria - Alma Redemptoris Mater e Super Flumina Baylonis, esta última apresentada em antifonia com elementos do coro ladeando o público. A primeira parte do concerto encerrou em entusiástica ovação com uma obra sublime de António Chagas Rosa (1960) para dezoito vozes, encomendada pelo Estado francês, que o coro Les Éléments havia estreado em Toulouse, em Maio passado, e com a qual se apresenta em digressão por diversas regiões francesas durante o mês de Julho. Lumine clarescet (2015) recorre a profecias sibilinas e gere uma harmonia monumental conforme com a “generosa acústica” de Alcobaça. Na segunda parte, em que a peça mais apreciada terá sido um sumptuoso Crucifixus a oito vozes, de Lotti, um quinteto masculino introduz a afinação de um modo não ocidental, com uma obra do mesmo Zad Moultaka (1965) que encerra o programa com Lama sabaqtani (2009) - novamente em afinação temperada- na qual simples assobios sustentados na tal acústica iludem o público quanto a uma eventual utilização de meios electroacústicos. A circulação natural de Gesualdo entre consonância e dissonância sintetiza, de certo modo, o espírito de um programa simultaneamente adequado a um público acostumado (e facilmente entendível) e aos menos habituados (e com pouca abertura para experiências no campo da música erudita). Visivelmente grato pelo entusiasmo do público, o agrupamento brindou-o com uma repetição da peça de Lotti, desta vez com as vozes mais espalhadas fora do palco, clarificando as oito vozes que compõe esta polifonia.

Na noite seguinte, subindo ao dormitório, a já conhecida Brigitte Lesne e o coro Discantus devolveram o Mosteiro ao período da sua construção, com uma proposta musical que reuniu repertório sacro e profano da corte de Afonso X, o Sábio, materializado nas vozes do septeto musical feminino acompanhado com diversas combinações de vihuela de arco, saltério, sanfona, sinos de mão e outras percussões. Naturalmente, Maria foi tema de muito do repertório apresentado, em que Afonso X figura a par de Guiraut Riquier, entre outros.

Tendo terminado este domingo na Nave Central do Mosteiro de Santa Maria, com o célebre Requiem de Mozart (Coro Ricercare e Sinfonietta de Lisboa), o Cistermúsica regressará no próximo ano para mais uma maratona de excelência musical.