Um texto inédito, uma ópera, uma pequena jóia de (e para) Agustina

Não foi pensado como ópera, mas ao ler o texto João Lourenço não viu ali uma peça. Vera San Payo de Lemos viu imediatamente: Três Mulheres com Máscara de Ferro pedia um libreto. O inédito de Agustina Bessa-Luís começava a transformar-se na sua primeira ópera. Sibila, Ema e Fanny Owne sobem a palco.

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As sopranos Patrícia Quinta (Sibila), Ana Ester Neves (Fanny) e Angélica Neto (Ema)

“Três mulheres, na atitude das três Graças, duas de costas, uma de frente, como se dançassem”. Assim arranca o texto. “Uma veste como camponesa. É a Sibila. Outra veste como uma senhora rica do século passado, é Fanny. A terceira é Ema e usa um vestido de baile”. Entram em cena as Três Mulheres com Máscara de Ferro, três personagens emblemáticas na obra de Agustina Bessa-Luís.

A  filha do coronel Owen, a Ema com cara de anjo que não é actriz, nem mulher da vida, e a lavadeira Quina, a sibila, encontram-se num inédito de Agustina que foi fixado em livro e agora editado pela Babel. Duplamente inédito - dele fizeram uma ópera e é a primeira da autora nascida em Vila Meã, Amarante, a 15 de Outubro de 1922. Sobe a palco sexta-feira e sábado no Teatro Aberto. 

Entramos numa pequena divisão do teatro na Praça de Espanha, em Lisboa, onde nos esperam o encenador João Lourenço e a dramaturga Vera San Payo de Lemos. É quarta-feira, o dia seguinte ao da estreia de Três Mulheres com Máscara de Ferro, convertido em ópera no âmbito do I Congresso Internacional dedicado à autora de Sibila, que decorreu esta semana.

Datado de Março de 1998, é um texto curto de cinco páginas, mas a dimensão não tem equivalência na riqueza do texto (“a sua concisão”, a capacidade de dizer tanto com tão pouco, “é uma das suas forças”, dirá Vera San Payo de Lemos). Fora apresentado pela primeira vez na terça-feira na Fundação Gulbenkian, parceira da produção com o Teatro Aberto. Chegara a palco uma “pequena jóia” - a expressão, citada por João Lourenço, é do compositor Eurico Carrapatoso, o autor da partitura. Agustina Bessa-Luís e a  ópera. Uma primeira vez.

“Acho que tudo isto foi muito feliz”, sorri João Lourenço, o encenador. “Toda a gente quis muito fazê-lo. Parece que todos fizeram a música, que todos encenaram, que todos cantaram”. E agora é uma realidade. João Paulo Santos dirige a música criada por Eurico Carrapatoso para clarinete, violoncelo, violino e piano. As sopranos Angélica Neto (Ema), Ana Ester Neves (Fanny) e Patrícia Quinta (Sibila) interpretam. Estreou com lugares reservados aos participantes no congresso.Sexta e sábado estará no Teatro Aberto, a partir das 22h. Sibila, Fanny Owen e a Ema de Vale Abraão. Três mulheres retirando a máscara para nos mostrar como pode a vida brotar numa rica diversidade de sentidos, três mulheres desconcertantes desvelando “um caso importante” das suas vidas - “vemos aí o que é o principal”, dirá Sibila: Ema, por exemplo, queria os brincos de brilhantes que vira nas orelhas de uma mulher (os brincos e as “sete setas de prata espetadas no peito” que essa “mulher triste” sofria). Três mulheres e o amor. “É esse o tema principal”, acentuará Vera San Payo de Lemos. “São figuras de mulheres”, e é feminino o olhar e os gestos que intuímos nas palavras, “mas os temas sobre os quais conversam e reflectem não são femininos, são universais”, ressalva.

Três Mulheres com Máscara de Ferro não foi pensado enquanto ópera. Quando Mónica Baldaque, filha de Agustina Bessa-Luís, abordou João Lourenço, fê-lo para que este encenasse “uma pequenina peça de teatro com aquelas três figuras fundamentais”, conta o encenador. Ao lê-lo, ficou impressionado com a “profundidade” e o “notável trabalho de concisão” do texto. Mas não viu ali uma peça. “Seria uma pena aquelas palavras tornarem-se pobres tendo simplesmente três actrizes a dizê-las”. Surgiria então Vera San Payo de Lemos, colaboradora de há muito, a apontar o caminho. “Quando vi aquele texto, com aquelas características, associei-o logo a um libreto”. Porquê? “Por ser muito curto, pela concisão das frases, muito curtas mas com imagens muito fortes, e por tudo estar construído com contrastes. A música daria profundidade àquelas palavras tão buriladas, tão pensadas, tão profundas. Ditas simplesmente não ecoariam como ecoam com música”.

A música, então. Entra em cena o compositor Eurico Carrapatoso. Tinha o texto, tinha aquilo que mais quiseram saber Lourenço e San Payo de Lemos sobre ele (“que estas mulheres existiram mesmo, que não são uma invenção da Agustina”, por exemplo). Tinha os traços com que a dramaturga desenhou os contornos das personagens: “Fanny Owen é a mais complexa, a mais torturada; para a Ema a imagem, a beleza, é muito importante; no caso de Sibila, que diria muito telúrica, sobressai a ideia dos elementos, a terra, o mar, os anjos, as bruxas, os homens e as mulheres”.

Já com as três sopranos que ouviremos em mente, Carrapatoso compôs individualizando cada uma das três mulheres, tão distintas, aproximando-nos do imaginário por elas habitado - “principalmente no caso de Sibila”, diz Vera San Payo de Lemos, sobressaem evocações da “música popular duriense”, das terras do Douro tão presentes na obra de Agustina. Entretanto, com os cenários de João Mendes Ribeiro e os figurinos de Bernardo Monteiro (a coreografia é de Cláudia Nóvoa), João Lourenço criou uma encenação “muito simples”, “minimalista”, que torna o texto “ainda mais moderno”. Todas as peças encaixadas, por fim.

“Vamos pôr as nossas máscaras e voltar para o nosso lugar”, dirá Ema. “Elas escondem que somos iguais aos homens e que temos direito ao reino deles. Mas como os iguais não se podem amar temos que usar estas máscaras de ferro toda a vida”. Recordamos a frase para ouvir Vera San Payo de Lemos apontar como no texto de Agustina convivem constantemente duas dimensões: “Cada frase contém reflexão filosófica, mas também uma elaboração muito poética”. João Lourenço: “É só uma hora. Uma hora em que existe esta pequena jóia que tanta gente ajudou a criar”.

Ema, Fanny e Sibila colocam as máscaras de ferro. “Voltamos ao nosso pedestal como as três Graças que somos”. Nasceu uma ópera. 

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