Um saco de batatas

Um magnífico romance de crescimento, nos confins da Europa em guerra

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Romain Gary escreveu este romance como tributo aos mortos — uma forma de manter viva a esperança na bondade do ser humano

Romain Gary, escritor francês nascido em Vilnius, actual Lituânia, escreveu o seu primeiro romance, Educação Europeia, durante a Segunda Guerra Mundial, quando se encontrava posicionado na Base Aérea de Hartford Bridge, em Inglaterra. Era piloto e pertencia à famosa esquadrilha Lorraine, que combateu os alemães em batalhas aéreas decisivas. No livro, publicado em 1945, o “herói”, Janek Twardowski, tem cerca de 14 anos e poderia levar a vida de um qualquer adolescente europeu despreocupado se o seu país não estivesse ocupado pelas tropas alemãs. Nesse Outono de 1942, que pressagiava um Inverno duríssimo, a Europa transformara-se num espaço de horror onde a fúria sanguinária da guerra clamava as suas vítimas. Com o desencadear da longa Batalha de Estalinegrado, as populações, vergadas sob o jugo nazi, eram postas à prova a cada instante.

O pai de Janek, médico respeitado em Vilnius, prepara tudo para que o filho possa esconder-se num dos refúgios da floresta onde se acoitam os partisans. Os membros da Resistência vagueiam, desesperados e dispostos a tudo para sobreviver — um grupo disperso e heterogéneo de homens e mulheres, de velhos e novos, de ricos e pobres, de camponeses iletrados e intelectuais que se reúnem à noite em redor de um fogo débil para comer as preciosas batatas e beber o chá de uma qualquer erva ou de um qualquer tubérculo. Dobransky, um dos partisans, escritor e alter-ego do autor, é a única figura “simpática”, aquele que regista todas as histórias, nos diversos locais onde as batalhas são travadas, para memória futura. No entanto, a sua personagem é mais simbólica do que real, de tal forma que é confundido com o célebre Nadejda, o herói invencível e omnipresente, inventado pela Resistência para dar ânimo aos seus correligionários nas lutas inglórias contra o inimigo. Seja na floresta, seja na cidade, os intervenientes neste drama usam de todos os estratagemas para sobreviver: o taberneiro Jozef Konieczny quer que os alemães sejam deixados “em paz”, uma vez que as acções da Resistência estragam o já parco negócio e são seguidas de violentas represálias; Chmura, o pai de Tadek, um brilhante jovem tuberculoso e visionário, insiste com o filho para que ele escape para a Suíça para ser tratado e não compreende a sua teimosia, ao querer permanecer na floresta; o violinista judeu enlouquecido que é mantido vivo para que toque para o gangue que o escraviza e que é resgatado pelos partisans (Janek acredita no poder regenerador da arte) acaba por morrer de frio e de fome; e as mulheres, para se manterem vivas, prostituem-se (e há as que são violadas pelos ocupantes e mantidas como “objectos” de diversão).

A Janek junta-se Zosia, uma miúda destemida e resistente que o guia na descoberta do amor, da amizade e do companheirismo. Aqui, Gary coloca a sua narrativa a par dos romances de aprendizagem, embora esta faceta da “educação europeia” seja demolidora e repelente, uma vez que, para além do inevitável ritual de crescimento, Janek é sujeito a experiências como a tortura, a loucura, a doença e a morte, sem esquecer o frio e a temível fome, muito eficaz quando se trata de exterminar populações. O relato de Gary possui uma aspereza desapaixonada quase insustentável. O autor não faz quaisquer concessões ao sentimentalismo e desdenha de todas as noções românticas de heroísmo, de patriotismo, de amor, de justiça ou de fidelidade; até Janek, o suposto “herói”, comete um acto de extrema ferocidade só para provar que é “um homem”. E quando um jovem soldado alemão resolve desertar e procura abrigo junto dos partisans, em vez de ser acolhido e protegido é abatido sem hesitações.

O mundo está virado do avesso, a antiga “normalidade” desapareceu para dar lugar à monótona passagem dos dias e das noites com o seu quinhão de violações, execuções sumárias e uma espécie de incapacidade para pensar, raciocinar ou sentir. A morte nunca é majestosa ou glorificada é, isso sim, feia, suja, humilhante e trivial. Não existe misericórdia e o mais horrendo cinismo — seco e desprezível — e a mais completa indiferença corroem a alma destes homens e mulheres (sim, mesmo as crianças não têm aquilo a que se chama “infância”) reduzidos à condição mais básica e abjecta, divididos entre a luta pela sobrevivência a todo o custo e o desespero mortal. É um universo de decisões arbitrárias, regido por um autoritarismo desumano que mina a cultura europeia no que esta tem de mais belo, na sua raiz matricial cultural, analisada exaustivamente por pensadores como George Steiner e Claudio Magris. (A certa altura do livro, quando o avanço do exército soviético representa uma esperança — e Janek acaba por se juntar às suas fileiras —, perguntam a Dobranski se ele gosta dos russos. Este responde: “Gosto de todos os povos mas não gosto de nenhuma nação… O patriotismo é amor pelos seus. O nacionalismo é o ódio aos outros.”)

Não deixa de ser curioso, e até irónico, que Gary tenha começado a escrever este livro em 1943, no mesmo ano em que Sartre publicou O Ser e o Nada, esse ensaio de ontologia fenomenológica em que o filósofo francês continua e, de certa forma sintetiza, a sua teoria da consciência, que é aqui formulada por Gary e que está também no centro do pensamento de um filósofo como Tzvetan Todorov quando avança, a propósito dos campos de concentração nazis e dos gulags soviéticos, com o enunciado: “Todos os vestígios da vida moral se evaporam quando os seres humanos se transformam em bestas aprisionadas numa luta sem tréguas pela sobrevivência.” (O escritor inglês William Golding debateu a mesma questão no romance O Deus das Moscas, de 1954, escrito quando regressou da Segunda Guerra Mundial.)

Gary, que viu demasiados camaradas seus a serem abatidos, afirmou que este romance foi um tributo aos mortos e uma forma de manter viva uma certa esperança na bondade do ser humano. Como viria a constatar mais tarde, foi uma esperança vã. Romain Gary, escritor de múltiplas caras (protagonizou o célebre affaire Ajar quando ganhou o Goncourt duas vezes: a primeira com Racines du Ciel e a segunda sob o pseudónimo Emile Ajar, com La Vie devant Soi) diplomata, realizador de cinema e piloto aviador, herói e sobrevivente da guerra, suicidou-se em 1980.

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