Ternura e violência

Não é um renascimento. A música que as Sleater-Kinney deixaram em sete álbuns é sempre um começo, para quem a ouvir. Muitas vezes

Foto
Corin Tucker, Carrie Brownstein e Janet Weiss fizeram uma música juvenil mas exuberantemente bela, pungente, à flor da pele

Jorge de Sena perguntava-se como era possível desesperar da América, se a América lhe tinha dado Walt Whitman e Emily Dickinson. Perdoe-se a desfaçatez e juntem-se a estes nomes as Sleater-Kinney. Como é possível desesperar da América, se a América nos deu, nos dá, as Sleater-Kinney? Se elas exprimem, citando o poeta e escritor, uma “forma de ser-se humano e solitário acompanhadamente”? Porque a música que fizeram é tão bela. De uma beleza pobre, modesta, juvenil, (ah) a do rock, que achou que podia ser maior do que as outras. Mas tão bela, tão pungente, tão à flor da pele. E ei-la agora na caixa Start Together, que reúne a discografia deste trio de mulheres de Olympia, Washington. 

São sete discos e, para os ouvir, é preciso ouvi-los muitas vezes. Por razões várias, nem todos terão a generosidade e disponibilidade necessárias. Corin Tucker, Carrie Brownstein e Janet Weiss tocaram e cantaram sempre à margem do espírito do tempo. E nem o fervor de Robert Christgau e de Greil Marcus (“a melhor de banda rock do mundo”, escreveu o autor de Marcas de Báton) interrompeu a alegria dos indiferentes. Era música que tinha irremediavelmente ficado para trás, fiel à energia dos X-Ray Spex, às sinfonias urbanas dos Sonic Youth, à alegria dos Ramones, das Go-Go’s e dos Buzzckoks, à poesia dos Wipers. E feita não por estrelas, divas, gente cool, mas por três mulheres comuns. Foi essa condição, explícita nas letras e nas vozes das canções, que irritou muitos ouvintes. Como escrevia uma jornalista, ou se amava ou se odiava, em silêncio, as Sleater-Kinney. Não havia (e ainda não há) meio-termo, quando Corin Tucker grita encolerizada, a plenos pulmões “I fixed it for youbut I don’t wanna be yr mama.” 

Com excepção dos críticos (e de alguns pares, como os SY e os The Go-Betweens), foi nos movimentos riot grrrl e queercore que as Sleater-Kinney tiveram o acolhimento merecido. Carrie e Corin amaram-se durante vários anos e fizeram canções inspiradas na relação que construiu e depois apagou esse sentimento. Não foram, no entanto, uma banda-bandeira. À margem de qualquer proselitismo, e demasiado genéricas, as suas referências autobiográficas eram familiares a qualquer ouvinte. Criavam uma empatia que a música vinha sublimar e ampliar. Uma empatia grande, digna.

Ouvir de hoje, de novo, as obras que nos deixaram é confirmar a boutade aparente de Marcus. Foram de facto, enquanto andaram pela estrada e gravaram discos, a melhor banda de rock do mundo. E é com alegre pesar que o predicado principal da frase se corrige: ainda são. O primeiro disco (Sleater-Kinney, de 1995) vem afogueado, com a raiva do punk. Em Be yr mama, Tucker canta para não sufocar, as veias inchadas; em A real man, berra, trocista, “All girls should haveA real manShould I buy it?/ I don’t wanna”. Nos anos 90 do hip hop e do nu-metal, estas palavras arranhavam, queimavam. Os traços principais das Sleater-Kinney estavam esboçados. A dinâmica, de uma exuberância aflita, entre as duas guitarristas, a facilidade com que uma voz se retraía para dar lugar à outra. O equilíbrio entre a violência e a ternura, a ironia e a amargura, o contentamento e a melancolia. A crítica à sociedade americana, a resistência (feminista e rockeira, pois sim) à sua transformação acelerada e imparável. 

Com Call The Doctor (1996), o trio expandia o som em várias direcções, o que era um esboço tornava-se um desenho. Cada canção descrevia atalhos inesperados, obstáculos, caminhos livres. Corin gritava, mas agora os seus agudos tremiam acima das guitarras (Little things) ou sossegavam no encontro com a voz adolescente de Carrie (Anonymous). Um ano depois, em Dig Me Out, as Sleater-Kinney já contavam com uma nova baterista, Janet Weiss (Laura Macfarlane, a anterior, regressara à Austrália). É ela quem põe as canções a falar (na maravilhosa One more hour) ou eleva a conversa das guitarras em Words and guitars (um elogio ao rock independente e uma provocação gentil aos novos géneros e modas musicais). É exactamente nesse tema e em Littles babies que as Sleater-Kinney mostram que sabem desacelerar, cortejar o silêncio e outros instrumentos, que sabem fazer canções pop. Que sabem tocar, brincar. 

The Hot Rock

 (1999), o disco seguinte, é outra obra-prima que corre em várias direcções, sem estoirar o coração, o centro (o punk-rock). Em 

Star together

, a sequência 

loud-quiet-loud

 é virada do avesso como os Pixies nunca imaginariam. Carrie tornara-se, para sempre, uma vocalista e as Sleater-Kinney inscreviam nas letras o que viam ao espelho: um trio de rock, com as suas frustrações, anseios e dúvidas. Nesse reflexo, o rumo da América continuava e continuaria a ser fonte de canções. Destacam-se aqui duas que dão os nomes aos discos que as guardam. Solene e tensa, 

All hands on the bad one

 (2000), deplora a hipocrisia da classe média americana. 

One beat

, do disco homónimo, comenta, sem oferecer respostas, os sonhos perigosos do homem (americano) com o novo mundo.

Com One Beat (2002) e The Woods (2005), o leque abrira-se. As Sleater-Kinney podiam fazer tudo. Usar teclados, introduzir coros pop, fazer canções acústicas (na incrível Modern girl, descendente da Imitação da Vida de Douglas Sirk), deixar o feedback à solta. Continuavam a ser a mesma banda, de brilho nos olhos e mãos nas cordas: diante da majestosa e plebeia Jumpers, as dúvidas rendiam-se. Seria com The Woods que a banda acenaria um adeus, agora revelado temporário, pois têm novo disco previsto para Janeiro. Com ou sem ele, neste caixa está a melhor banda de rock do mundo. Com canções para os apaixonados que ainda gritam, que ainda dão os braços aos velhos. Esta é a sua banda sonora.

Sugerir correcção
Comentar