Sleaford Mods: a frustração deles é a nossa voz

A música é crua e minimal. Identificamos genes punk e genes hip-hop, mas não é igual a nada que tenhamos ouvido antes. Os Sleaford Mods não cantam, derramam sobre nós, em golfadas de versos gritados, a tensão insustentável da iniquidade dos sonhos desfeitos. Bem-vindos a Inglaterra.

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Os Sleaford Mods são Jason Williamson e Andrew Fearn SIMON PARFRAMENT
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9 de Julho de 2014, 7h22 da manhã. Jason Williamson, nascido na pequena Grantham, cidade das East Midlands, hoje habitante de Nottingham, escreveu na sua conta de Twitter: “Trabalho. Pior do que os tweets do Liam Gallagher”. Naquele escritório onde trabalhava no aconselhamento de beneficiários de subsídios de apoio social atribuídos pelo Estado inglês, Williamson viu muito do que é hoje o país em que nasceu. “Percebi que as esmolas atribuídas aqui e ali não permitem a ninguém sobreviver. Não permitem, muito simplesmente. É insano."

Di-lo ao telefone desde Nottingham, no seu forte sotaque polvilhado de calão. “Para mim, esse trabalho foi a cereja no topo do bolo." Bem-vindos à Inglaterra dos cortes no Estado Social, da ascensão dos nacionalistas extremistas do UKIP, da classe média que já ninguém sabe se existe verdadeiramente. Bem-vindos à Europa, segunda década do século XXI.

Quando twittou às 7 da manhã de 9 de Julho, a vida de Williamson 44 anos, pai de uma filha de três, estava em processo de mudança. Como milhões de trabalhadores, acordava de madrugada para cumprir horário num emprego desesperante, mal pago e nada valorizado. Não lhe ligámos por isso. O que fazia nas suas noites é que nos levou a pegar no telefone no início de Dezembro. Um mês antes, víramo-lo num clube em Utrecht, em concerto inserido na programação do festival Le Guess Who. Perante nós, os Sleaford Mods que Williamson mantém desde 2006 mas que só ganharam intenção e definição quando, há um par de anos, se juntou ao produtor Andrew Fearn, também habitante de Nottingham, nascido numa quinta no Lincolnshire. Escrevemos então: “Os Sleaford Mods são os The Streets a quem a crise financeira caiu em cima da cabeça e, portanto, estão muito irritados, lixados da vida, irados e sem pachorra para subtilezas. O clube está cheio, os perdigotos do vocalista que não canta e não rapa (“shouted word”, é o que têm chamado ao que faz) brilham à luz dos holofotes e estamos todos juntos naquilo que Jason Williamson diz: as desigualdades insuportáveis a que chegámos enquanto sociedade, a iniquidade do um por cento, o humor cáustico disparado contra as estrelas de rock do passado que já não representam nada."

Williamson é músico. Tenta uma carreira na música desde que, pré-adolescente, sentiu o impacto dos Sex Pistols; desde que, adolescente, se apaixonou pelos The Jam, pela Motown, e pela cultura mod; desde que, depois disso, deu de caras com a “CNN do gueto” que eram os Public Enemy. Teve várias bandas rock convencionais e não chegou a lado nenhum. Saltou de emprego merdoso em emprego merdoso, bebeu de mais e tomou demasiadas drogas e foi despedido mais do que um par de vezes, antes de serenar os seus “demónios” enquanto atravessava a terceira década de vida.

Depois de sair de Grantham, cidade conhecida pela distinção em meados dos anos 1980 como a mais aborrecida do Reino Unido e por ter visto nascer Margaret Thatcher (“É espantoso como o mal pode ocultar-se nos lugares mais insuspeitos”, comentou à imprensa inglesa), viveu em Londres e em São Francisco. Mais empregos merdosos, mais noites perdidas, mais bandas que não chegaram a lado nenhum.

Um dia, um produtor amigo criou um loop com o som violento, distorcido, de uma canção de death-metal e, sobre ela, Williamson começou a despejar a bílis provocada por um quotidiano sequestrado: frases cuspidas com sofreguidão, entrecortadas pelo som da respiração, trago de ar sorvido ruidosamente para que as palavras continuassem a ser disparadas, uma após outra. James Williamson descobria-se. Um par de anos depois, descobrimo-lo também.

Espaço para respirar

Nunca ouvimos nada assim. E é pouco provável que encontremos hoje quem retrate de forma tão descarnada e pungente, tão zangada e certeira, com tanta wit, a vida nos dias da austeridade  (eles são, afinal, um produto tipicamente inglês, mas, ao contrário dos Stereophonics ou dos fish & chips, não exclusivamente ingleses). Não por acaso, o álbum que colocou sobre eles os holofotes, editado em 2013, tem por título Austerity Dogs.

Daí para cá, Luke Haines (Auteurs, Black Box Recorder), homem de língua afiada e difícil de agradar, elevou-os a melhor banda inglesa (“tão simples quanto isso”). Editaram novo disco, Divide And Exit, que acabou nas mais diversas listas de melhores álbuns de 2014 (em Inglaterra e fora dela – figura na do Ípsilon, por exemplo). Entretanto, Mike Patton ficou entusiasmado ao ponto de editar na sua Ipecac uma compilação anteriormente exclusiva ao on-line (Chubbed Up+ saiu há dois meses) e Geoff Barlow, dos Portishead, lançou-lhes depois disso o EP Tiswas (todos têm agora distribuição portuguesa pela Flur). Pelo meio, os históricos Specials convidaram-nos para os acompanhar em digressão. Mas, afinal, de que música falamos exactamente quando falamos destes Sleaford Mods que, na sua página na plataforma Bandcamp, se apresentam com um cómico “já tive bandas / detestei com’ó caraças”?

Ouvimos uma produção minimal, pouco mais do que uma batida crua, um baixo colocado em destaque na mistura, tocado com precisão operária, e o som adornado com apontamentos de guitarra ou com camadas de teclados baratos. Esta música tem genes hip-hop e negrume pós-punk, tem agressividade punk simplesmente, vestígios de uma versão primitiva dos LCD Soudsystem e uma voz que não canta e que não rappa exactamente – Mark E. Smith, dos The Fall, tem aqui um irmão espiritual. A tensão é constante, palpável. Williamson a explodir indignado: “I can’t belive the rich still exist, mate/ let alone fucking rule the country”. A chafurdar na fétida realidade do dia-a-dia em que até o céu azul, como canta em Black Monday, é desperdiçado. A arrancar Tied up in nottz, provavelmente a canção mais célebre da banda, com linhas que se tornarão imortais: “The smell of piss is so strong it smells like decente bacon”. E em 14 day court, denúncia recheada de humor do aburguesamento de vários protagonistas da cena musical, ouvem-se frases como estas: “I don’t want white teeth and big tits/ I want yellow fingers and missed mortgage payments/ I’m in the zoo, hangover, and somebody just thought I’m Liam Gallagher/ I’m not happy” (o humor, apesar da agressividade da interpretação, é uma componente muito importante desta música).

“Estamos tão fartinhos de bandas pretensiosas que criam um corpo de obra gloriosamente recheado de som mas que, enquanto conteúdo, não tem nada. Nada. É só produção e imagem. A nossa música é uma tomada de posição em relação a isso. Uma desconstrução, digamos. Nunca deixo de me surpreender com a quantidade de pessoas que se deixam cegar por trampa. O que quero dizer com trampa? Comercialismo básico. As pessoas querem ser compradas, querem que lhes digam do que gostar”, acusa Williamson.

Os Sleaford Mods, pela natureza da música, pela forma absolutamente transparente como se apresentam em palco (Andrew Fearn carrega no play do leitor do laptop, Jason Williamson canta sobre a faixa pré-gravada e é só isto, mas isso, no caso deles, é muito), querem marcar uma posição, querem provocar uma reacção. “Não sou um outsider, estou completamente imerso no Estado e nesta sociedade e todos os valores contra os quais me manifesto continuam, de certa forma, a sustentar-me. Preciso de um pequeno espaço para respirar, um espaço que posso organizar e gerir e onde não podem abusar de mim. Os Sleaford Mods são grande parte desse pequeno espaço na minha vida."

As sementes do capitalismo

Em entrevista, Jason Williamson não é o homem constantemente irritado, eternamente tenso, que ouvimos nas suas canções ou em palco. O tom é calmo e ponderado, muito sério. Williamson, que traz o calão das ruas para as canções, que canta como tipo no pub muito certo das suas convicções, certo de que será ouvido quer os outros o queiram ou não, está longe de unidimensional. Nasceu há 44 anos em Grantham, “uma pequena cidade de mercadores do século XII”, descreve. “Ficava na rota até Londres e, nos velhos tempos, vinham viajantes de tão longe quanto a Escócia, seguindo uma estrada que atravessa pequenas cidades onde paravam para dormir, beber e fazer o seu comércio." Williamson, que a vê hoje “com menos gente e menos dinheiro, transformada num dormitório de Londres”, abominava Grantham quando tinha 20 anos. “Não tinha nada para me oferecer." Por isso saiu.

Já demos conta da rota: Londres, São Francisco, Nottingham. Teve as bandas que agora abomina e teve formação em Teatro (não apreciava particularmente Shakespeare, interessavam-lhe mais Harold Pinter, Bertolt Brecht ou Antonin Artaud). Andou nos Estados Unidos para continuar a procurar uma vida na música e acabou a trabalhar como segurança em bares e a embebedar-se sozinho em casa ao final da noite.

No regresso a Inglaterra, trabalhou como operário em fábricas, em lojas de roupa, naquilo que aparecesse. A experiência de “andar na luta quase sem dinheiro, mentalmente meio perdido, a perder amigos e empregos sem encontrar uma saída”, fê-lo ver cada vez mais claramente. “É aí, no fundo da pirâmide, que vês o que é a vida. Especialmente numa sociedade capitalista, é aí que estão as fundações da sua organização, porque é para lá que escorre todo o lixo que não é contido pela rede de regras e ideologias."

Sim, ele não está aqui para procurar optimismo onde não o vê. “A minha visão do mundo é muito negativa, a minha visão do regime capitalista actual, também. E julgo que isso não mudará no meu tempo de vida, nem no tempo de vida da minha filha. Estão plantadas as sementes para uma aceleração do processo, no sentido em que se entranhe no indivíduo até se tornar consensual a ideia de que o objectivo da vida é acumular rios de dinheiro, ou simplesmente o suficiente para que o conforto permita andar pela rua sem sofrer as pessoas menos afortunadas com que nos deparamos” – “liveable shit/ you put up with it”, ouvimo-lo, farpa a uma existência sedada, confortavelmente desconfortável.

Não falem a Williamson de Thatcher e Bush, que “lançaram as sementes”, não lhe falem da esquerda do New Labour de Tony Blair. “Quis mostrar-nos que tinha parado a bola de neve que crescia desde os anos 1980, mas foi só uma aparência. O dinheiro ainda é o factor-chave para a felicidade no capitalismo. Riqueza espiritual pode dar-te algum conforto temporariamente, mas continuarás a ter contas para pagar. O capitalismo tornou-se mais sofisticado. O seu legado sobrevive." Não lhe falem, igualmente, da oposição actual aos Conservadores de Cameron. “Suponho que sou de esquerda, mas a esquerda é muito diferente hoje. É difícil distingui-la da direita. Não há compaixão, não há preocupação com as pessoas que passam por dificuldades. É só conversa da treta. Estas pessoas não têm dimensão de líderes, são simplesmente homens de negócios. Não vejo ninguém com uma visão. E principalmente, não vejo compaixão."

Saber o que não queremos ser

A irritação de Jason Williamson é, digamos, generosa. Sente-se traído pelos políticos que governam o país, sente-se traído por aqueles que se lhes opõem e que se refugiam, por exemplo, na “insanidade” das propostas xenófobas do UKIP (“Fico com vontade de cuspir na cara das pessoas”, disse à imprensa inglesa). Sente-se traído pelos seus heróis de outrora, como Paul Weller, líder dos favoritos Jam, perpetuamente agarrados a um passado de abundância, e pela insignificância da cena musical que o rodeia (“Who cares about rock stars anymore?”, pergunta em Smithy; “Sonic Youth fan, MBV [My Bloody Valentine], if you like feedback that much/ get a job at the council”, ironiza em 14 day court). Acossado, dispara em todas as direcções. Não quer ser porta-voz de nada, não ambiciona que tomem os Sleaford Mods como banda-sonora de uma revolução. “Somos apenas músicos”, desvaloriza. “Só ambiciono dar expressão ao que vejo à minha volta e não estou interessado em ser um mártir ou um testa-de-ferro do que quer que seja. Somos apenas músicos”, repete, “e isto é o que fazemos”.

Somos apenas músicos, repetirá. Tudo verdade, mas é difícil pensar em música recente que capte de forma tão vívida e tão inesperada o pulsar dos tempos. Para isso concorre a vontade dos Sleaford Mods em encontrar uma forma de expressão que os represente totalmente – a língua e a forma como é utilizada são determinantes: James Williamson compreendeu-o ao constatar, numa fase de obsessão com o grupo hip-hop Wu-Tang Clan, que era a forma de utilizar o calão e as entoações do inglês nova-iorquino que lhes dava singularidade (a ele mergulhou então mais profundamente no linguajar das suas East Midlands). Junte-se a isso uma música que se reduz ao mínimo essencial, mas que, nesse minimalismo, consegue criar diversidade a partir de pequenas reorganizações na estrutura: o ritmo que acelera um pouco, um inesperado som de teclados, uma pandeireta samplada que dá uma nova dinâmica à canção. O processo criativo é rápido para captar uma urgência, para conseguir transmitir à música um certo ar inacabado. “Fazer uma canção demora-nos uma hora no máximo, por vezes metade desse tempo."

Há neles, principalmente, uma férrea consciência daquilo que não querem ser. Williamson, que nos conta ter passado os últimos tempos a ouvir repetidamente os primeiros álbuns do guitarrista folk inglês da década de 1960 Bert Jansch e o músico/performer londrino do século XXI Dean Blunt, confessa: “Gosto muito de uma banda inglesa chamada Fat White Family e há um par de grupos interessantes por aí, mas, no geral, sinto que não temos visto muita gente a ser criativa com o formato rock nos últimos tempos. Há lugar para boas melodias e harmonias bonitas na Inglaterra de hoje, mas a simples ideia delas é frustrantemente aborrecida." Na música que fazem, os Sleaford Mods não têm tempo para se aborrecerem – o que é, de resto, fundamental para a criação da tão perturbadora quanto inspiradora tensão que atravessa as suas canções.

Em Outubro, Jason Williamson largou finalmente o emprego para se dedicar a tempo inteiro à banda e sente que tem sido “uma revelação” na sua vida o sucesso tardio que está a conseguir – e melhor para a saúde, já que sente que, se isto lhe tivesse acontecido há 20 anos, ter-se-ia deslumbrado e perdido pelo caminho. Jason Williamson, ainda assim, continua aborrecido, muito aborrecido. Andar em digressão, por exemplo, e ele tem feito muitas, “é uma chatice do caraças”: “Os concertos são bons, tudo o resto é uma treta. Não podes meter-te em drogas e copos o tempo todo, caso contrário enlouqueces. Portanto, se não estás a drogar-te ou a embebedar-te, aborreces-te a maior parte do tempo."

Eis então os Sleaford Mods. Um produtor saído de uma quinta perto de Lincoln (“O pai [de Andrew Fearn] era agricultor e ele cresceu e viveu numa quinta, por isso é um gajo muito rural; digamos que não o encontrarás numa loja de produtos orgânicos”) com um “talento incrível”, assegura o companheiro de banda, “para ser um pioneiro de novos sons em vez de repetir as mesmas merdas de sempre”. E um cantor que canaliza descontentamento e frustração para letras em que um retrato vívido e desarmante do quotidiano, nos cenários construídos e na linguagem utilizada, é complementado por uma cultura popular exposta com mestria – este ano, as suas letras foram compiladas pela Bracket Press num livro de edição limitada intitulado Grammar Wanker, já esgotado.

Jason Williamson aponta a “honestidade” dos Sleaford Mods como responsável pelo sucesso que têm tido em 2014. “A energia da música está definitivamente a dizer qualquer coisa ao ouvinte. Está a dizer-lhes que qualquer coisa não está bem. Eu não sou por natureza uma pessoa feliz, mas é óbvio que algo está profundamente errado e é importante documentar isso. Não é possível ignorá-lo."

2013 foi o ano em que a Inglaterra os descobriu. 2014 foi o ano em que a palavra se espalhou a Sul do Canal da Mancha. 2015 será o ano em que se tornará impossível ignorá-los. James Williamson continuará a aborrecer-se nas digressões, a entregar-se totalmente ao momento do concerto, a juntar-se a Andrew Fearn para cuspir em meia-hora mais um pedaço da ira que o mundo lhe provoca. Aos fins-de-semana, tentará estar com a família, a passear com a filha ou a ouvir a guitarra do mago Bert Jansch. O futuro continuará a parecer-lhe negro, mas ele nada receia. “Não temo pelo futuro da minha filha. Ela chegará a uma idade em que perceberá que a vida pode ser um lugar muito lúgubre e preparar-se-á para isso. Se o mundo tiver de explodir amanhã, vai explodir mesmo e nada poderemos quanto a isso. Todos os dias há pessoas a jogarem com as nossas vidas, a decidirem o que será de nós. Ainda assim não, nada temo. Temos de continuar. Continuar sempre."

Os Sleaford Mods não nos dizem como escapar. Mostram-nos o peso que carregamos. Procurando bem, contudo, descobriremos um coração a bater por esperança sob o esgar tenso que lhes invade o rosto. Um verso de Under the plastic and NCT: “Under the general weight of it all/ Exist impossible visions of love”.

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