Se isto é Celan…

Paul Celan é um poeta que solicita um delicado e infinito esforço de tradução. Tal sorte, não a teve nesta antologia, um passo em falso cometido por uma tradutora de mérito

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Traduzir um poeta como Celan é um desafio grandioso, mas o resultado que nos oferece esta antologia não é nada satisfatório

A poesia de Celan, traduzida em português, chegou-nos em 1993, 23 anos após o suicídio, no rio Sena, deste poeta de língua alemã que escreveu parte da sua obra confrontando-se com a tragédia do Holocausto e com as várias mutilações que ele implicou, entre elas a da língua. João Barrento e Yvette K. Centeno seleccionaram e traduziram mais de uma centena de poemas, retirados de todos os livros de Celan publicados até então (entretanto, a obra póstuma aumentou), e a editora Cotovia publicou-os. Chama-se Sete Rosas Mais Tarde, essa antologia poética, bilingue, actualmente esgotada. Depois, em 1998, João Barrento traduziu poemas do espólio, publicados na Alemanha um ano antes. Esse volume, também bilingue e também editado pela Cotovia, chama-se A Morte É Uma Flor

Traduzir um poeta como Celan é um desafio grandioso: porque se trata de um dos maiores poetas do século XX e porque levou bem longe a criação idiomática, que se traduziu num trabalho árduo contra a língua alemã, à qual ele se referiu uma vez como a “língua dos carrascos” (dos seus pais e do seu povo). Por isso, era com regozijo e expectativa que se esperava a tradução de cem poemas de Celan por Gilda Lopes Encarnação, que tinha feito, entre outras, uma excelente tradução de A Montanha Mágica(D. Quixote). Mas o resultado que nos oferece Não Sabemos Mesmo O Que Importa (assim se chama a antologia) não é nada satisfatório. 

O hermetismo e a obscuridade da linguagem da poesia de Celan tornaram-se tópicos fundamentais dos imensos estudos dedicados à sua obra. Sabemos que o poeta manifestou muitas vezes alguma impaciência pelo facto de ser considerado hermético e, no seu mais importante texto poetológico, O Meridiano (um discurso de agradecimento do Prémio Georg Büchner, em 1960), passando pela questão da “obscuridade atribuída à poesia”, pareceu querer afastar-se desse horizonte, afirmando que o poema postula sempre um “encontro” e, assim, “o poema absoluto — não, é mais que certo que não existe, não pode existir, tal coisa!”. Podemos entrever aqui a dificuldade que é a tradução da poesia de Celan, mantendo ou reconstituindo a tensão semântica original, e até a dificuldade de discutir o trabalho dos tradutores com argumentos que não se transformem em pressupostos absolutos. Por isso, na crítica desta tradução de Gilda Lopes da Encarnação, limitar-me-ei a apontar o que me parece situar-se já num plano que nenhum critério e nenhum objectivo conseguem justificar.

Vejamos, então, um poema sem título, que começa assim: “Espasmos, amo-te, salmos” (p. 211). Na segunda estrofe, podemos ler três palavras formadas por prefixação a partir de ewig (eterno): “Ewigverunewigt [ver+un+ewigtbist du,/ verewigt [ver+ewigt], Unewig [Un+ewig], du”. Eis o que nos é dado na tradução: “Eterno, ineternizado és tu,/ eternizado, Ineterno, tu.” Sabemos que no alemão a formação de palavras por justaposição é muito comum. Mas em português é difícil aceitar uma forma como “ineternizado”. Mas há um outro problema, mais objectivo, que invalida esta tradução: trata-se de um poema que descreve uma cena forte de amor sexual, onde há o êxtase do orgasmo (é pelos “espasmos” que começa o poema). Porquê, então, atribuir àquele tu objecto de uma invocação (“Eterno, ineternizado és tu”) o género masculino, se está completamente excluída a hipótese de Celan estar a falar de uma cena de amor carnal entre dois homens? O poema torna-se assim incompreensível, e não é por causa do famigerado hermetismo de Celan. E voltando ao magno problema da transposição para português de palavras alemãs compostas, é evidente que Gilda Lopes Encarnação faz um uso imoderado da justaposição. Por exemplo: “mar-errância” para “Irrsee” (p. 17; e, já agora, será que “errância” restitui o sentido de loucura e de erro de “Irre”?), “azul-meta” para “zielblau” (p. 188) “escrita-foice” para “Sichelschrift” (p. 168), “provisões-coração” para “Herzvorrat” (p. 124), e assim sucessivamente. Certamente que mesmo em alemão muitas destas palavras têm a sua estranheza, mas as regras de formação de palavras, nesta língua, admitem o que em português se torna muitas vezes aberrante e incompreensível (e dão azo a traduções equívocas: por exemplo, “Wabeneis” é “gelo do favo”, como encontramos num poema, ou é mais plausível que seja “favo de gelo”?).

Quando Celan escreve este verso: “Geh, verzedere auch”, dificilmente podemos conceber que isto soe tão irreconhecível e bárbaro como: “Vai, cedreia-a também” (Zeder é cedro). É que nós não formamos tão facilmente verbos a partir de substantivos. Outro exemplo, ainda dentro da mesma categoria: “lígnea/ a retina”, que lemos no poemaNoite (p. 69), é, nada mais nada menos que “verholzt/ die Netzhaut” (Holz é madeira, lenha; portanto, verholzt significa que se tornou madeira). Há aqui uma decisão que determina, do princípio ao fim, o trabalho da tradutora: trata-se de escolher sempre a forma mais estranha e complicada, o que faz com que os poemas se encham de palavras e expressões que parecem provenientes de uma língua artificial e que muito dificilmente podemos atribuir ao idiomatismo celaniano. Por exemplo: “deixa-o errar“ (p. 61) para “laß es wandern” (wandern é andar, caminhar; mas, aqui, o leitor é imediatamente induzido a perceber errar, no sentido de cometer erros, uma fatal ambiguidade que não existe no original); a vida é “comprimida por cifras” (p. 203), para “zahlenbedrängt”, e não pura e simplesmente “oprimida por números”. E “a hora”, “die Stunde”, é sempre “o momento”: “Este momento, teu momento” (p. 99) para “Diese Stunde, deine Stunde”. Às vezes, esta procura da palavra ou da fórmula menos simples pode dar origem a uma “alma nubelizante” (p. 66) para “Wölkende Seele”, e a um “ao luar do verbo” (p. 131) para “bei Wortschein”, que significa simplesmente à luz da palavra. 

Em … Murmura a Fonte, o problema é outro: o Ihr com que se inicia o poema é uma invocação (“vós”, e não “vosso”, como traduziu Gilda Lopes Encarnação, que também deixa a segunda estrofe incompreensível pela mesma razão: “Vossas minhas como eu/ atrofiantes palavras” (“Ihr meine mit mir ver-/krüppelden Worte”) deveria ser “Vós, minhas palavras...”). O poema, como é óbvio, fica completamente incompreensível. Incompreensível é também que Gilda Lopes Encarnação tenha traduzido “Wir sind Fremde”, um verso do poema Grades da Linguagem (p. 65), por “Nós somos estranhos”. É que este poema do livro de Celan de 1959, com um título homónimo, foi muitas vezes objecto de interpretações biográficas que identificaram no “Tu” que nele surge a figura de Ingeborg Bachmann (que Celan conheceu em Viena, antes de ir para Paris, e com a qual manteve uma complicada relação amorosa mesmo depois de casado com Gisèle Lestrange). E, obviamente, ele e Bachmann são “estrangeiros” e não “estranhos” (a palavra alemã é a mesma para os dois significados). A condição de estrangeiro é, aliás, um dos tópicos fundamentais de Celan. Ainda nesse poema, devemos perguntar porque é que o condicional, “Wär ich wie du” é traduzido por “Fora eu como tu” e não por “Se eu fosse como tu”. 

E o que são os “convivas de marceneiros”, do poema Tübingen, Janeiro (p. 111)? Não serão antes visitas de marceneiros (as “Besuche Schreiner”), já que o poema se refere a Hölderlin, aos seus anos de loucura, na torre da casa do marceneiro que o acolheu e, com a mulher, se ocupou dele? E o que é “O teu/ Além-estar esta noite?”. É certo que o original é “Dein/ Hinübersein heute Nacht”, mas a solução encontrada, para além de aberrante, não restitui um sentido essencial de “Hinübersein”, que é a passagem para o outro lado (e neste poema essa passagem para além tem sido interpretada em sentido teológico). Para terminarmos com um exemplo que dá bem a ideia de que esta antologia de poemas de Celan fornece uma longa lista de problemas de tradução de todas as tipologias, olhemos para o “Estar, à sombra”, com que se inicia um poema sem título (p. 153). Devemos reparar que aquela vírgula isola o “Estar” (no original, “Stehen, im Schatten”). É que aquele “Stehen” tem um sentido de resistência, não é pura e simplesmente “estar”, como reza a tradução. É manter-se, ficar de pé. 

E em jeito de nota de rodapé: como foi parar uma rima tão inconveniente no início de Para Longe (p. 73)? Ei-la, sem pudor: “Mudez, outra vez”. Se rima, não é Celan.

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