Reviver o passado no Texas

Um livro de viagens no tempo: ao descobrir um portal temporal, o protagonista tem a possibilidade de salvar JFK e de impedir o Vietname e os assassinatos de Martin Luther King e Robert F. Kennedy

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Stephen King usa o "gancho" JFK para regressar a um período mais feliz da sua vida e da História

A data que titula este livro de Stephen King tem uma carga poderosíssima, não só na psique norte-americana como na do resto do mundo. Não é preciso ser-se um dos muitos “especialistas” na matéria nem um dos (ainda em maior número) “maluquinhos” das teorias da conspiração para conhecê-la ou saber o seu significado. Da mesma forma que “Dealey Plaza” e “Texas Book School Depository” jamais serão apenas nomes de um lugar e de um edifício. Em 22 de Novembro de 1963, o presidente dos EUA, John F. Kennedy, era assassinado à vista dos milhares que saudavam a sua passagem por Dallas. Passadas umas horas, a polícia prendia o principal suspeito, Lee Harvey Oswald, um ex-militar com simpatias comunistas. O caso nunca iria a julgamento, pois Oswald seria por sua vez assassinado por Jack Ruby, dono de uns clube nocturnos, na própria sede da polícia, dois dias depois.

Esta série de acontecimentos sempre pareceu demasiado absurda à maior parte das pessoas. E, nas palavras de Norman Mailer, citadas por King numa das epígrafes, era inimaginável que um homem sozinho pudesse abater a tiro o líder do país mais poderoso do mundo. Era inaceitável que um medíocre qualquer tivesse mudado o curso da história norte-americana em seis segundos. Daí até às inúmeras teorias sobre o assassinato foi um pequeníssimo passo. Máfia, cubanos, militares, o vice-presidente Lyndon Johnson, alguém mais teria de estar envolvido. Porventura, Oswald seria mesmo o bode expiatório que dizia ser, usado para escamotear a maior conspiração da história. Nos últimos 50 anos, o episódio daria ainda origem a incontáveis obras de ficção (no sentido estrito), de que o livro Libra de Don DeLillo e o filme JFK de Oliver Stone serão os exemplos mais conhecidos.

Ao contrário destes, Stephen King faz de Lee Harvey Oswald o único assassino de John Kennedy. Mas a grande diferença para os demais está na premissa, mais próxima da ficção científica ou da fantasia do que da especulação baseada numa investigação dita séria. 22/11/63 também é um livro de viagens no tempo — ao descobrir um portal temporal, o protagonista tem a possibilidade de salvar o presidente e, julga ele, de impedir a Guerra do Vietname e os assassinatos de Martin Luther King e Robert F. Kennedy, entre outros episódios negros da história norte-americana. King mistura assim duas das mais ricas temáticas da ficção contemporânea. No entanto, a sua pesquisa não é menos cuidada, não só com o intuito de recriar a vida nos anos 50 e 60 (os costumes, a linguagem), como para retratar Oswald nos anos anteriores ao assassinato. Muitas das personagens (reais) de Libra reaparecem em 22/11/63: desde logo Oswald, menos inocente, menos vítima das circunstâncias, com mais sede de fama; Mariana, a mulher russa, alvo da sua ira; George de Mohrenschildt, o ambíguo russo branco, seu protector e possível instigador do atentado ao general Edwin Walker (espécie de ensaio para Kennedy).

Contudo, se a premissa era “um homem viaja no tempo para salvar Kennedy”, Stephen King desvia-se dela em boa parte das 900 páginas do livro. Como o protagonista Jake Epping, professor de inglês no Lisbon Falls High (escola que King frequentou), é obrigado a esperar cinco anos pela data fatídica — o tal portal temporal envia-o sempre para 1958 —, tem de ir vivendo a sua vida até lá. Esta segunda vida de Jake no passado corre muito melhor do que a sua no presente — se numa era divorciado, na outra encontra agora (ou antes) o grande amor; em vez de professor enfastiado, é um membro importante da pequena localidade no Texas para onde vai residir —, revelando uma profunda nostalgia de King. No passado, tudo parece melhor, sabe melhor, é mais barato, as pessoas são mais carinhosas e despretensiosas, o ar mais limpo. O próprio passado, vai-se percebendo, resiste em ser mudado, quer permanecer tal como era, com vontade própria. 22/11/63 é, mais do que tudo, uma revisitação do autor aos tempos da infância e adolescência, usando o “gancho” Kennedy para regressar a esse período mais feliz não só da sua vida como da História.

Alguns críticos apontaram a dimensão exagerada e a inserção deste segundo enredo como defeitos, motivo do desequilíbrio do livro, sinal de uma certa auto-complacência. E é verdade que, a certa altura, o leitor já se esquece da premissa inicial, envolvido na outra história. Mas King nunca o deixa perder fio à meada, sabendo prendê-lo com as técnicas aprendidas no thriller (que 22/11/63 também é) e no terror (a violência do homem, contra a mulher e os filhos, outro dos temas do livro, é bastante gráfica): insinuando acontecimentos futuros, mantendo o leitor na expectativa, sempre a desejar saber mais, obrigando-o a virar página sobre página, a ler o livro quase de uma assentada. A isto se chama um page turner, por muitos considerada uma forma menor da literatura, escrita para leitores episódicos, dispostos a qualquer nova forma de escapismo. Ainda assim, Stephen King, como autor de bestsellers, granjeia um apreço crítico invulgar. A sua escrita não é brilhante, não inclui propriamente frases citáveis, mas raramente cai no mau gosto, em metáforas estapafúrdias, naquela adjectivação pobre dos livros mais populares. É seca, enxuta, “to the point” — uma tradição da literatura norte-americana, pelo menos, desde Hemingway. O enredo é sempre o mais importante, a escrita funcional.

Perante uma imaginação tão fecunda como a de Stephen King, essas questões são de somenos.

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