Polifonias do Homem Armado no Palácio de Sintra

Na 1.ª edição do ciclo Reencontros – Memórias Musicais de um Palácio, os belgas La Capilla e Oltremontano apresentaram este fim-de-semana um programa fascinante.

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No âmbito da 1.ª edição do ciclo Reencontros – Memórias Musicais de um Palácio, os agrupamentos belgas La Capilla e Oltremontano apresentaram este fim-de-semana no Palácio Nacional de Sintra um fascinante programa, inteligentemente arquitectado em torno da polifonia franco-flamenca do século XV.

As temáticas da guerra e da paz serviram de fio condutor através das múltiplas versões musicais da Missa de L’homme armé e da antífona Da pacem. A canção de L’homme armé, de autor desconhecido, foi a base para mais de 50 missas e outras obras escritas entre meados do século XVI e o final do século XVII. Na elucidativa conferência que precedeu o concerto, o musicólogo Manuel Pedro Ferreira expôs as principais teorias sobre o simbolismo do homem armado — por vezes identificado com as cruzadas, com personagens históricas ou mesmo com Jesus Cristo — e deu abundantes exemplos da correspondente paródia poética e musical (no sentido da utilização de uma composição pré-existente na elaboração de uma nova obra).

O concerto teve lugar no mágico ambiente da Sala dos Cisnes do Palácio de Sintra, seguindo uma estrutura tripartida: Preludium, Missa e Postludium. Os músicos do Oltremontano fizeram uma verdadeira Intrada, deslocando-se pela coxia ao som das trompetes e do rufar do tambor, instrumentos que trocaram depois pela formação mais habitual do grupo, constituída por um corneto e um consort de três sacabuxas (trombones antigos). A melodia de L’homme armé, a exuberante Battaglia de Matthias Werrecore/Henrich Isaac (na tradição de um género musical que procurava recriar sonoramente os tumultos) e o motete Jubilate Deo omnis terra de Cristobal de Morales, com as vozes de La Capilla entrelaçadas com as brilhantes sonoridades dos instrumentos de sopro, tocados com grande segurança pelo Oltremontano, completaram o Preludium.

Na Missa, as secções do Próprio foram entoadas em gregoriano por diferentes membros do quarteto vocal masculino que forma La Capilla, recorrendo-se no caso do Ordinário a algumas das mais notáveis versões polifónicas da Missa de L’homme armé, escritas por compositores diferentes: Jacob Obrecht no caso do Kyrie e Gloria; Pierre La Rue no Credo e no Agnus Dei; e Josquin Desprez no Sanctus. Desta vez a cappella, ou seja sem acompanhamento instrumental, os cantores de La Capilla (grupo conhecido como La Capilla Flamenca antes da morte do seu fundador, o baixo Dirk Snellings, em 2014) mostraram precisão e transparência na transmissão de texturas musicais complexas que fazem uso do material da canção de L’homme armé de diferentes maneiras. Cada voz emerge com o seu timbre próprio, mas estabelece ao mesmo tempo uma equilibrada cumplicidade com o conjunto num todo coerente. Um ponto alto, antes do Agnus Dei, foi a interpretação com recurso à espacialização de vozes e instrumentos da peça Proch dolor/Pie Jesu, uma elaborada composição contrapontística a sete vozes de enorme introspecção e poder expressivo, geralmente atribuída a Josquin, que lamenta a morte do Imperador Maximiliano I.

No Postludium, as versões polifónicas da antífona Da Pacem (também neste caso um dos cantus firmus mais usados da História da Música) da autoria de Antoine Brumel, Joanes Prioris e Pierre La Rue, e o Benedicamus de Obrecht, voltaram a reunir vozes e instrumentos em interpretações de grande rigor e espiritualidade, assentes num sólido domínio estilístico da música do século XV. Foi um concerto de alto nível, com alicerces num profundo trabalho musicológico e artístico, princípios que sobressaem da generalidade da programação desde novo ciclo dedicado à música medieval e renascentista, organizado pela Parques de Sintra e pelo Divino Sospiro - Centro de Estudos Musicais Setecentistas de Portugal, com direcção artística da violoncelista Diana Vinagre. O programa continua até 27 de Junho, sempre à sexta e sábado, incluindo conferências e concertos por grupos especializados nestes repertórios.

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