Poética do nome próprio

A ausência ganha presença na poesia de Manuel de Freitas

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A poesia de Manuel de Freitas nasce da disforia, do lado negro das coisas, do desajuste DAVID CLIFFORD/ ARQUIVO

Onde estão aqueles que estiveram aqui antes de nós é a pergunta inscrita em Ubi Sunt, título deste livro de Manuel de Freitas que a epígrafe de Apollinaire subsume dolorosa e magnificamente logo a seguir (nem sempre a precisão é tão concisa e perfeita): “Passons passons puisque tout passe/ je me retournerai souvent// Les souvenirs sont cors de chasse/ Dont meurt le bruit parmi le vent”.

Ouve-se docemente o som a morrer. Depois, nem a música absorve ou reconduz a emoção, o vazio, já só memória tentacular, como as vibráteis caudas de um cometa que aparece e desaparece rumo a nenhures. Sabe-se que a poesia de Manuel de Freitas nasce na ou da disforia, no lado negro das coisas, do desajuste. De um detalhe casuístico na aparência que se sobrepõe e invade o poema, definindo-o, escrevendo-o, mansamente, até o configurar sombria, irada ou afectuosamente. É poesia cruzada com algum sarcasmo en passant; poesia que diletantemente ou com controlada e subtil distância dribla a queda com o que escreve entre parêntesis, parecendo estar sempre a voltar atrás. Disforia, reiteramos, menos na precisão inesperada de algum verso lá metido pelo meio que contorce e redefine de repente o poema. Disforia, menos na expressão recorrente da indignação, por vezes encapuçada, do repúdio de tantas situações que envenenam o mundo e o comportamento das gentes. Disforia, menos no contágio, implícito e explícito, de muitos outros campos semânticos e lexicais que multiplicam o sentido.

Pela prevalência do sombrio, poder-se–ia deduzir que o peso, a suspensão de um qualquer pormenor mais pregnante, seria a onda capaz de envolver estes poemas. Nada de mais errado. O pano de fundo sensível, a matriz, é o movimento — para a morte, O movimento inexorável do tempo. Ele mesmo, em si, é o único sobrevivente. Assistimos ao movimento do corpo das coisas a recuar, subtraindo-se, recuando, perdendo-se, ao abandono. Note-se a belíssima fotografia da capa: um lençol ou uma camisa num estendal, livres do corpo, claro, indiciando-o apenas. É o vulto de uma ausência, o molhado a transmigrar para uma grade enferrujada. Desfocada pelo fosco de um vidro que se interpõe, a imagem é, assim como o título e a epígrafe, emblema do livro.

É a própria passagem, no sentido que lhe dá Apollinaire, que caracteriza Ubi Sunt: o passar em si, curso irreparável, desmultiplicado em figuras várias, díspares, descoincidentes, mal encaixadas, presas pela invenção de pontes improváveis, inesperadas, fugazes, já que nem a identidade nem a coincidência pertencem ao universo do autor. E a roda não pára. Dois poemas que explicam: ZULMIRA, 1989: “Sopa de feijão,/ pataniscas,/ salada de orelha,/ ovos cozidos/ sardinhas de lata,/ tabaco,/ moelas// E o ruído do Epifânio,/ na cozinha.”; ZULMIRA, 2013: “Mesas,/ cadeiras.// Ninguém.” Vinga o despovoamento do mundo e do mundo íntimo do sujeito. A memória devolve espectralmente rostos, situações, ruas, largos, paisagens, instantes, encontros. Mortos. Quase intolerável é o facto de a revisitação de tudo isso se ir espaçando, rarefazendo. E o escândalo de se poder continuar a ir vivendo apesar de... e de o mundo parecer igual apesar de... Um outro poema, final: MINUS HABENS: “Boa noite, Bruno, estejas em/ que perdida guerra estiveres./ As tabernas fecharam, é demasiado/ tarde para voltarmos a pôr palitos/ na próxima sala de aula. Tu ainda tinhas/ angústias concretas, eu; nem isso./ Unia-nos a vocação do abandono.// Chamávamos-te Jesus, enquanto docilmente/ te evadias com música e outras drogas/ das penosas aulas matinais. E surpreendeste-me/ um dia com uma cassete, de que pediste segredo:/ The Velvet Undergroud & Nico. Era só para mim,/ acrescentaste, e nada voltou a ser igual.// José Júlio e Manuel — mas preferíamos/ tratar-nos por Pedra, numa idade/ em que os Smiths ou os Joy Division/ nos interessavam mais do que Palestrina.// E a solidão, provisoriamente abrandou./ Mas tu gostavas de hóquei e de punk,/ e eu fui-me tornando mais barroco,/ permeável a alguns assédios líricos/ que seriam, para ti, inconcebíveis.// Tínhamos, porém, a mesma idade./ Espera-nos agora a mesma morte.”

A linha recta de vida-para-a-morte perde circunstancialmente velocidade, dir-se-ia suspensa. Ou interrompida a sua consciência de si pela convocação de lugares, situações, pessoas e sensações singulares, reais: quadros de vida contíguos a nomes próprios. Uma poesia da ausência ganha na hora presença. Os nomes próprios, tornando-se o exclusivo rosto da pessoa ou da circunstância comum, sem história, realçam o que de cada vez foi absolutamente único; cessa assim a percepção do terrível curso do tempo, atrasa-se a dissolução de tudo no anonimato, isto é, na morte. Um nome próprio, como o daquele café ou daquele taberneiro, resiste, como uma argola de ferro, sóbria mas duradoura. E o que na memória continua voluntaria e involuntariamente a reverberar é a matéria do poema, é o outro nome do poema. Posto que “a utilidade fundamental da poesia consiste (...) na sua vocação de aproximar pessoas e de diluir falsas fronteiras. O resto — não me levem a mal — é apenas história da literatura”.

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