Passagem para a Índia

Galgut conta com mestria a história notável que é a biografia ficcionada do romancista inglês E. M. Foster

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Na versão ficcionada de Galgut, E. M. Foster é outra daquelas suas personagens que viajam e que se sentem sempre sós, mesmo quando encontram e se ligam a um estranho ou a um amigo

Em 1909 o autor inglês E. M. Forster (1879-1970) iniciou a escrita de um romance a que nessa altura chamou Verão Ártico, uma história sobre as incertezas da escrita e da sexualidade, mas que nunca chegaria a terminar. Mais de um século depois, o escritor sul-africano Damon Galgut (n. 1963) recuperou esse título misterioso para a biografia ficcionada do autor de Passagem para a Índia. E mais uma vez, Galgut regressa aos temas dos seus romances anteriores – Um Quarto Desconhecido (2011) e O Impostor(2013), ambos por cá publicados pela Alfaguara – a fragilidade das relações humanas, a irremediável persistência da solidão, a ideia de viagem como panaceia, a incapacidade de comunicação.

E. M. Forster embarca para a Índia em 1912 graças ao êxito da publicação do seu quarto romance, Howards End; tem então trinta e três anos e “começava a pensar em si como um escritor”. O propósito da viagem era visitar o seu amigo indiano Syed Ross Massod, que com 17 anos de idade fora seu aluno de latim em Inglaterra, e por quem ele se apaixonara. Durante a viagem, conhece um oficial do exército britânico que estava de regresso ao seu posto na Índia, Kenneth Searight. Fica impressionado com o seu à-vontade ao falar abertamente da sua homossexualidade e das suas conquistas entre os jovens indianos. E. M. Forster era ainda virgem. Diz Searight: “As pessoas vão para lá, para a Índia, quero dizer, e começam a comportar-se como nunca se comportariam em Inglaterra. Para mim, a culpa é do calor.”

Damon Galgut volta em Verão Ártico (finalista do Man Booker Prize) ao tema recorrente da viagem como uma espécie de procura de alívio da solidão através do estabelecimento de fortíssimas mas breves ligações emocionais da personagem principal com outros viajantes, como se esses laços fossem necessários a uma desejada redenção. É esta a estranheza que vem da descoberta da viagem como resultado do desespero, como uma panaceia para a incapacidade de estabelecer ligações duradouras, que por vezes torna os seus romances angustiantes, numa quase descoberta da “doença da solidão”. A viagem como uma incansável e estranha busca (de cura, de amor, de esquecimento da perda?) Em Um Quarto Desconhecido (2011, Alfaguara), Galgut escreveu: “Neste estado, viajar não é uma celebração mas uma espécie de luto, uma forma de nos dissiparmos. Vai andando de lugar em lugar, impelido não pela curiosidade mas pela aborrecida angústia de permanecer vivo.”

Na versão ficcionada de Galgut, o escritor inglês é outra daquelas suas personagens que viajam e que se sentem sempre sós, mesmo quando encontram e se ligam a um estranho ou a um amigo. Fica a pairar sobre eles a sensação de que aquele é um outro “novo” tipo de solidão, que acaba por ser mal disfarçado com sentimentos mais ou menos contraditórios. É o que acontece com o romancista inglês ao reencontrar o amigo indiano, Massod, que não lhe corresponde o amor e se mostra e age de uma forma quase inesperada para Forster. Depois da viagem à Índia, o escritor volta à Europa onde conhece Carpenter, um intelectual amigo de Whitman e que, ao contrário dos seus contemporâneos, consegue falar abertamente de homossexualidade. Mais tarde, com a Primeira Guerra, Forster parte para o Egipto, para Alexandria, onde trabalha para a Cruz Vermelha, e acaba por encontrar o poeta Kavafis. Mas também no Egipto (antes de voltar uma segunda vez à Índia) a sensação de solidão, quase de abandono, estará sempre presente. A sombra do amor da mãe (e pela mãe) – com quem viveu toda a vida, até à morte dela, aos 90 anos – parece persegui-lo como um impedimento a outras ligações, como por exemplo com Mohammed, um jovem egípcio com quem acaba por ter uma relação amorosa complexa.

O romance de Damon Galgut foca-se sobretudo no período entre 1906 (ano em que Foster conhece Massod) e 1924 (ano da publicação de Passagem para a Índia, que foi também o último romance de E. M. Foster e um brilhante e poderoso retrato do Império Britânico). Pelo meio, para além das vivências trazidas pelas viagens, há os encontros de Foster com Henry James, D. H. Lawrence, Virgínia Woolf e Kavafis. Mais do que uma biografia ficcionada, Verão Ártico é o percurso de um homem através das suas contradições e dúvidas a caminho de uma maturidade sexual que será sempre sentida como tardia.

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