Palmilhando memórias

A poesia de John Mateer leva-nos a uma simpatia maior por nós e pelos nossos itens históricos

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John Mateer apossa-se neste livro de um amor por Portugal que Portugal não tem Sérgio Azenha

John Mateer nasceu em Joanesburgo em 1971. Depois, foi ficando a percorrer o mundo e as línguas do mundo, encorpando-as como se dançasse nelas ou entre elas; foi ficando a absorver o clima humano e cultural do lugar, de cada lugar, de cada encontro. Fez seu o imaginário de outros, de cada espaço e mito que (re)visitou, interiorizou e devolveu sob a forma de escrita poética.

Ainda criança os pais emigraram para o Canadá, a seguir um longo périplo pela Europa, antes do regressarem à África do Sul quase como se fossem, ele e a família, novos emigrantes — remigrated, como diz numa entrevista a David Shook. De quase todos os lugares inúmeros que atravessou fez a sua casa ou neles se sentiu em casa, entre família, um talento budista, como ele próprio sugere. Paradoxalmente, se a designação puder fazer sentido, é uma espécie de fenomenologia budista. Menos dos Estados Unidos, não por nenhum anti-americanismo primário ou secundário, mas apenas porque estranhou, não se sentiu capaz de se deixar tomar, de compartilhar o pathos. Mateer tem poemas traduzidos nas mais estranhas línguas, como o farsi ou uzbeque. Poemas publicados em revistas, em antologias, publicações mais ou menos marginais, editoras menores (Antologia Breve, na Língua Morta, em 2012; Este Livro Escuro, na Averno, em 2013). Na escola, em criança, aprendeu africâner, sotho, zulu e latim. Destas, só permaneceria o africâner, porta aberta para o holandês e o alemão. Viveu aliás em dois países bilíngues, antes de se radicar na Austrália: a África do Sul e o Canadá, onde a mesma realidade tinha pelo menos dois nomes. Daí o fascínio pela tradução, pela natureza em si da (re)conversão, o ser em si, se assim se pode chamar, da trocabilidade de significantes para um mesmo significado. Donde um poema, Os tradutores são anjos: Os tradutores são anjos, sussurrei/ no ouvido do meu anjo-da-guarda na Biblioteca Joanina/ Ficam ao nosso lado, ouvindo os nossos pensamentos./ Apenas murmurando o que é necessário. Sorrindo ligeiramente,/ ouvindo cuidadosamente o orador que tinha mencionado o meu nome;/ ela disse: Somos ninguéns perfeitos; sem nome,/ sem voz, incandescência alada, excepto quando nos portamos mal./ depois virou-se para mim: Como agora, se não te disser o que ele disse”. Tradução, multiplicação de línguas, enquanto corpos, ajustes locais num ponto da História, entre alguéns. Vivências ou situações experimentadas.

Em Namban, John Mateer tece um teatro de figuras que transporta na memória pessoal, que é também intrinsecamente cultural e histórica. Com o dom porém de poder diferir sempre, transmigrar, adiantar-se ou atrasar-se, (re)encarnar, fundir-se com uma qualquer experiência actual (“e o meu coração abre-se como o ouvido sintonizado para uma língua nova”).

Neste livro, o poeta apossa-se de um amor por Portugal que Portugal não tem, podendo com ele os portugueses enternecerem-se. Acompanha atemporal e poeticamente o caminho e o sonho colonial português, as venturas e desventuras intemporais das Descobertas. Sobrepõe para tal campos semânticos. Com os poetas: Camões (escrevendo com alguns cantos de Os Lusíadas), Pessoa (logo em epígrafe), Camilo Pessanha (chega ainda a um Oriente mais Oriente que o Oriente). Mas também acompanha aspectos do (nosso) ainda dia-a-dia. Mateer escreve com imenso humor, por vezes camuflado, astuto. É o caso do primeiro poema, O Presidente, leia-se Xanana Gusmão. Esse ex-guerrilheiro, ironicamente actual, mas escrito antes: “Xanana estava numa cadeira, ao frio Melbourne,/ Esfumaçando um cigarro e uma vez mais tentando traduzir as palavras/ que pretendia recitar antes do seu discurso dessa noite./ A sua biógrafa estava com ele, preparada para o seu fumo incessante/ sabendo que ele já tinha publicado alguns cantos/ daquilo que imaginava poder vir a ser uns Lusíadas para Timor Leste,/ Esperava que ele não estivesse a debater-se com isso: os dentes dela tiritavam./ Que outra palavra em inglês, reflectiu ele, rima com sadness?”

O carácter daquilo que escreve situa-se do lado da leveza, não do peso; é o lado diurno que faz exalar de quase tudo. O que não invalida que um dos poemas mais belos do livro — Cemitério da Ajuda — seja profundamente triste, mansamente triste. Nele a leveza não tem a ver com ausência de profundidade, mas antes com experiência, encarnação, permutabilidade do(s) fenómeno(s) — o sobrevoo amoroso de um transeunte estrangeiro cuja matriz sensorial devém portuguesa, ou a de um português que pudesse amorosamente ver-se de fora sem agruras de maior. Não sendo essa a função poética, obviamente, John Mateer leva-nos a uma simpatia maior por nós, pelos nossos items históricos. A recepção desta poesia navega entre o assombro pela originalidade das imagens poéticas que produz, a elegância e a singularidade da torção elegante do verso, o humor de algumas situações-cliché a que assistimos de fora sorrindo (Caparica — praia do povo), o enternecimento por esta visão do outro, que se escreve como sendo a diagonal traçada entre um mesmo luminoso, íntimo, cúmplice, e um certo cansaço pela reiteração de um ponto de vista algo simplista em poemas menos conseguidos (Alegoria).

A poesia de John Mateer é antes de mais uma poesia literalmente amável, isto é, que se pode e deve amar.

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