Os Matmos condenados à liberdade

Há instrumentos e objectos, electrónica e sons concretos ou música e imagem, desenvolvida pela dupla americana Matmos desde há 20 anos, para sentir ao vivo esta sexta e sábado.

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James Thomas Marsh

Em seu torno gerou-se um relativo culto, em 2001, quando lançaram o terceiro álbum, A Chance To Cut Is A Chance To Cure, e logo de seguida vieram a ter um papel preponderante na feitura de Vespertine de Björk, seguindo em digressão com a islandesa.

Antes já tinham lançado três álbuns de originais, tendo iniciado o seu percurso a meio dos anos 1990, e depois dessa fase mais mediática dos anos 2000 lançaram mais oito álbuns, sendo o último The Marriage Of True Minds de 2013. Nunca estiveram filiados em escolas ou tendências, pautando-se pela singularidade.

Agora estão em Portugal. Com eles trazem vinte anos de música electrónica baseada em sons concretos. Esta sexta apresentam-se ao vivo no teatro Maria Matos em Lisboa e sábado no GNRation em Braga. Para além dos concertos houve esta quinta-feira uma masterclass (domingo, será em Braga), com a qual Martin Schmidt, metade do duo com quem falámos, acaba a brincar, como em relação a quase tudo.

“Não somos mestres de nada, não somos académicos da música, mas gostamos de falar sobre o nosso trabalho, sobre o som e como ele afecta as pessoas e, no fim de contas, temos a secreta esperança que talvez os participantes sejam melhores do que nós a fazer o que nós fazemos o que é sempre interessante.”

Sim, é verdade, Schmidt e o seu parceiro, Drew Daniel, não são académicos da música, mas também não sabem muito bem o que são. “A única coisa que sabemos é que já fazemos música juntos há vinte e dois anos e que entretanto fizemos doze álbuns”, ri-se.  

Autores de discos com histórias lá dentro e figuras maiores da bricolage sonora, desencadeada a partir de electrónicas e sons concretos (do corpo, água, insectos ou cirurgias plásticas), os Matmos não são músicos convencionais. Aliás não são músicos.

Pelo menos é o que afiança Martin Schmidt. “Nos últimos anos fomo-nos distanciando cada vez mais do ideário do nosso trabalho, tentando-o perceber de outros ângulos, e fomos percebendo que não somos bons a executar uma peça da mesma forma que a vez anterior”, afirma ele, entre risos, “e isso tem a ver com o facto de não sermos músicos no sentido tradicional."

Quando discorre sobre o assunto a sua voz entusiasma-se, tentando promover uma comparação entre um músico e um não-músico que cria música. “Não temos memória para repetir de forma exacta a mesma figura ou acorde”, justifica ele, “o que acaba por ter um efeito engraçado – na maior parte do tempo temos medo do que estamos a fazer porque é novo. Estamos literalmente a criar novo material em frente das pessoas. O que é exaustivo, pela incerteza. Por outro lado não sei como é que os músicos normais conseguem tocar a mesma canção, todas as noites, da mesma forma. Qual é o desafio? Ok. É tocar todos os dias da mesma forma, mas nós somos incapazes de o fazer.”

Em A Chance To Cut Is A Chance To Cure recriavam o ambiente das salas de operações através de sons de instrumentos de cirurgia e em The Civil War (2003) propunham uma nova visão da América, conduzindo-nos numa viagem no tempo às lutas entre ianques e sulistas, enquanto em The Rose Has Teeth In The Mouth Of A Beast propunham biografias sonoras de ícones gay e lésbicos. No último álbum o ponto de partida é a ideia de telepatia e uma série de experiências conduzidas de forma mais ou menos científica.

The struggle against unreality begins Matmos
Public sex for Boyd Mcdonald Matmos

Quando perguntamos a Martin Schmidt se para eles é importante fornecer aos ouvintes uma segunda camada de leitura, ou de história, sobre os sons que estamos a ouvir ele, claro, acaba a ironizar. “Umas das coisas mais prazenteiras em ser conhecido por fazer discos a partir de estranhos sons, como nós, é que podemos comunicar com as pessoas sobre essa ideia. É divertido. De alguma forma comportamo-nos como qualquer evangélico que quer expandir a sua religião e passar uma qualquer mensagem.”

Às tantas recordamos-lhe que, por exemplo, para Matthew Herbert, o som, os ruídos, o processo e o produto final são experimentados como entidades políticas. Ele faz questão de os fazer participar no mesmo guião e comunica-os ao público.

“Também nos preocupamos que tenham acesso à informação sobre os sons, qual a origem e porque os convocamos. É importante documentá-lo, até para garantirmos, até onde isso é possível, que a nossa ideia inicial não é transformada ou manipulada, mas não diria que temos um propósito político como Herbert. Talvez aí as palavras funcionem melhor. Os sons concretos podem ter as mais diversas interpretações. Ok, com as palavras temos o mesmo problema... [risos]. Mas não sei se a revolução pode ser feita gravando o som de uma bandeira a arder, embora se juntarmos som e imagem essa situação possa mudar.”

Mais de vinte anos depois do início continua a ser difícil situá-los. Nem se constroem nas vanguardas, apesar do sentido exploratório da sua abordagem, nem na música popular, apesar do sentido lúdico de tantas das suas intervenções e música. Uma ambiguidade que é vivida de forma saudável pela dupla. “A história da música, electrónica ou não, está cheia de exemplos de músicos que comunicam de forma poderosa connosco, mesmo se não se inserem numa escola, tendência, género ou comunidade.”

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O que não lhes tem faltado ao longo dos anos é a oportunidade de desenvolver colaborações, até porque o seu trabalho tem seduzido artistas visuais, encenadores ou coreógrafos (Daria Martin, Young Jean Lee ou Ayman Harper) e, claro, outros músicos como Björk, Antony, Terry Riley, Kronos Quartet ou Zeena Parkins.

Mais recentemente participaram na ópera The Life and Death of Marina Abramovic de Robert Wilson, embora Schmidt argumente que Wilson nunca deve ter ouvido a música deles, dizendo que o convite partiu de Antony. “Seja como for gostamos desses processos de colaboração, tentando perceber o que podemos transmitir, estando também disponíveis para sermos espantados, mas sem nunca deixarmos de nos concentrar no que somos.”

É sobre o signo do que são hoje os Matmos, e têm sido ao longo dos anos, que os concertos de sexta e sábado se vão desenrolar. “Felizmente não temos nenhum daqueles sucessos que somos obrigados a tocar para agradar”, diz ele, “portanto podemos fazer o que nos apetece, tendo em atenção as pessoas que nos conhecem há mais anos. Será uma mistura de peças novas e coisas que nunca fizemos e também de referências mais antigas.”

Será um misto de sons, vídeos e improviso, com Schmidt no computador, sintetizador e objectos e Daniel no sintetizador, percussão e objectos. E serão, claro, espectáculos diferentes porque, já se percebeu, nunca se repetem. “Tentamos, mas não conseguimos”, diz Schmidt, “estamos condenados a ser livres.”

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