O que podemos, o que somos e o que seremos

Uma leitura profundamente actual para os dias turvos de hoje.

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As reflexões de Hannah Arendt sobre a violência ecoam prospectivamente em fenómenos como a Primavera Árabe

Estas páginas de Hannah Arendt, escritas em 1969, debruçam-se como o nome indica Sobre a Violência, tema antes de mais político que nunca foi muito abordado por filósofos. Convoca alguns, mais ou menos consensuais, que continuam a merecer atenção. Outros nem por isso.

De Hobbes e Leibniz a Sartre. De Clausewitz, Sorel e Spender a Frantz Fanon, interpelando ainda sociólogos como Pareto ou Bell. Convém sublinhar que alguns dos mais vivos teóricos contemporâneos retomam Arendt — casos de Giorgio Agamben, Etienne Balibar e particularmente Jacques Rancière, o que indicia o vigor daquela filósofa e ensaísta alemã e confirma a pregnância tão actual de noções como interrupção (violência como interrupção, fissura inabsorvível), litígio ou dissenso no campo das reflexões heterogéneas sobre o tema. Imagine-se um frente-a-frente entre Rancière e Arendt, o que se passa hoje no mundo como pano de fundo. Hoje, a centralidade destes dois pensadores é imensa, no que se opõe e o no que se retoma.

Quando Hannah Arendt escreveu 
Sobre a Violência, o mundo vivia pacificamente o rescaldo da Segunda Guerra Mundial e as potências sabiam que um novo conflito com recurso ao nuclear conduziria à destruição global. Desta maré emergiu a Guerra Fria e a estratégia da dissuasão vingou. Ao mesmo tempo, nessa época em mutação, febril (mas ainda mais hoje as metáforas orgânicas são um perigo), um desejo de mudança fervilhava: os confrontos e as manifestações contra a guerra, assim como as reivindicações no sentido de uma tomada de poder pelas ruas e pelas universidades, alastravam mais ou menos anárquica e jovialmente entre os estudantes idealistas e rebeldes e o poder ossificado nas universidades (Berkeley e os “mandarins da Sorbonne”), nos EUA e na Europa. A violência dos estudantes agitaria um poder estabelecido, pretendendo aqueles arrebatar consigo as classes trabalhadoras. O horizonte seria a revolução. “Mas depararam com a hostilidade dos trabalhadores”. Ao mesmo tempo, nos EUA, ganhava corpo o movimento Black Power e este, fortemente enraizado na sua própria comunidade, não era sensível aos ideários juvenis universalistas. Mas a complexificação crescente das sociedades desmultiplicava, impessoalizando-as, as instâncias representativas dos cidadãos. A burocracia, o poder de ninguém, sedimentava-se na administração e no Estado (o que levaria ao despertar, tão sensível hoje, de micronacionalismos regionais, fortemente identitários). A glorificação da violência, entretanto, seguia paralela às descolonizações, à sua urgência, ao complexo de culpa do Ocidente e à afirmação da noção de Terceiro Mundo. Arendt, que a considera não um realidade mas uma ideologia, cita uma frase ao tempo de Sartre: “Indígenas de todos os países subdesenvolvidos, uni-vos!”

A tudo isto subjaz uma ideia vigente desde o século XVIII: a de progresso da humanidade, com revezes, claro, mas em desenvolvimento contínuo. A ensaísta considera ser limitado o alcance teórico da Esquerda, da então Nova Esquerda — “uma curiosa timidez no campo da teoria que contrasta insolitamente com a corajosa audácia prática”. Democracia participativa terá sido a “única palavra de ordem positiva” que ficou. Se a dissuasão conteve o deflagrar do conflito nuclear e biológico entre as duas super-potências e se a guerra virtual transmigra para um crescente aperfeiçoamento dos instrumentos, a revolução em curso é tecnológica e gera a influência crescente dos cientistas, a violência dissemina-se, multiplicam-se as guerrilhas, atomizam-se os focos de instabilidade: “O progresso da ciência não só deixou de coincidir com o progresso da humanidade (...) como pode também ditar o fim da humanidade, do mesmo modo que o progresso da investigação poderá acabar na destruição de tudo o que o que fundamentalmente conferia valor ao saber. O progresso já não pode servir de avaliação dos processos de mudança desastrosamente rápidos que deixámos que se desencadeassem.” Aliás, se hoje a utopia do aperfeiçoamento da humanidade vacila, outra entrou em campo. Depois da queda, em 1989, da Cortina de Ferro, a Primavera Árabe: recolocando o horizonte problemático da democratização do mundo inteiro (aquecimento global à mistura).

Como sabemos, a multiplicação incontrolada de focos descontínuos de violência, consegue interromper imprevisivelmente o que de outro modo se pensou processar automática e previsivelmente no quadro da futurologia (científica) apolítica. Era e é o paradoxo da democracia entre o individualismo, a liberdade — valor absoluto para Arendt — e a regra, permitindo e limitando (herança judaico-cristã dos Mandamentos, da obediência). Para esta, sendo a violência do foro instrumental (um meio), há a possibilidade de recomeço, de um (re)ajuste em continuidade. Ao contrario de Rancière, que lê a violência e o caos como emblemas de uma ferida que por natureza escapa aos litígios jurídicos e institucionais, manifestação da impossibilidade do consenso, corte irreparável, disrupção que escapa ao poder, à autoridade. 

Detalhando noções contíguas como Violência, Guerra, Soberania, Estado, Poder, Potência, Força e Autoridade, Hannah Arendt traz ao leitor instrumentos para pensar o mundo de ontem e de hoje. Um exemplo simples, distinguindo Violência e Poder: “Quando um deles governa absolutamente, o outro está ausente (...). Se Gandhi se tivesse confrontado com a Rússia de Estaline ou a Alemanha de Hitler, o resultado seria a chacina e não a descolonização.”

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