O que é um clássico?

Jack White é baterista, mas a sua marca está por todo o lado.

Foto
O equilíbrio entre o classicismo que já não é o clássico canónico, e a vontade de procurar inspiração noutras paragens faz de Dodge And Burn um bom álbum

Curiosa esta marca de classicismo criada por Jack White. Quer nos White Stripes, quer nos Raconteurs, quer no seu trabalho a solo, o guitarrista de Detroit é invariavelmente descrito como um nostálgico de tempos idos que, pela força da sua crença na música que o formou e pelo talento a absorvê-la e regurgitá-la, dedica-se a soprar vida em sons perdidos na memória. Não é difícil reconhecer que o homem que um dia dedicou um álbum, Elephant, à morte dessa instituição americana que é a sweetheart, e que manifestou o desejo de ter nascido um cavalheiro do blues nos anos 1940, aprecia o velho panteão clássico anglo-saxónico. Mais curioso, porém, é perceber como se inscreveu nesse panteão transformando-se ele mesmo num clássico.

Nos Dead Weather Jack White é o baterista que acompanha Alison Mosshart, vocalista dos Kills, Dean Fertita, teclista dos Queens Of The Stone Age (aqui também guitarrista) e Jack Lawrence, o baixista dos Greenhornes ou Raconteurs, mas a sua marca está por todo o lado: nos riffs graves e distorcidos com tecnologia actual – esse que fez de Icky thump, por exemplo, a marca de água da sua relação com a guitarra -, no som que parece flashes convulsivos iluminando a escuridão em redor, no gosto em enxertar no tal classicismo genes de proveniência inesperada. Dodge And Burn, o terceiro álbum dos Dead Weather tem isso tudo (White participa activamente na composição e isso nota-se).

Gravado ao longo dos últimos dois anos no intervalo das actividades principais dos quatro elementos da banda, o sucessor de Horehound (2009) e Sea Of Cowards (2010) veste o cabedal preto que nas fotos promocionais cobre White, Fertita e Lawrence (Mosshart prefere o também mui rock’n’roll padrão leopardo) e abre com riffalhada Zeppeliana (que rima com reptiliana, o que tendo em conta a interpretação da vocalista faz todo o sentido). Mostra depois aquele prazer pela pesquisa sónica que, aos nossos ouvidos, transforma guitarras em teclados sujos de electricidade, e engrandece o stomp minimal dos White Stripes com banda completa: “I’m a bad man, let me through”, canta Alison Mosshart em Let me through, a terceira canção, e, contrariando as evidência, acreditamos nela.

Mais que uma colecção de canções criadas laboriosamente, Dodge And Burn é o resultado de uma banda que procura reproduzir um certo espírito rock’n’roll: ataque sónico frontal e luxúria como mote para a criatividade. Isso conduz a momentos menos inspirados, a canções que são uma ideia de som em vez de canções de corpo inteiro (Lose the right, cantada por White, ou Be still). O segredo, aqui, está na fuga. Na neurótica Three dollar hat, espírito hip hop em delírio de terror sci-fi (Jack White dá voz convincente ao imaginário), ou numa Mile markers de batida rufada, groove bem medido, em que White e Mosshart vão trocando versos habilmente (ele em modo MC do rock’n’roll, ela qual membro de girl group em convívio frutuoso com rockers convictos).

Let me through
Mile markers
I feel love (every million miles)

O equilíbrio entre o classicismo que, como escrevemos, já não é o clássico canónico, e a vontade de procurar inspiração noutras paragens faz de Dodge And Burn um bom álbum. As canções rock’n’roll em piloto automático que pontuam essa relação fazem com que seja isso mesmo, “apenas” um bom álbum.

Sugerir correcção
Comentar