O cavalo é amigo, o cavalo é pai

Um caso ímpar da literatura europeia numa edição exemplar

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Isaac Babel transpôs a sua experiência como correspondente de guerra para O Exército de Cavalaria — uma experiência dissonante

Há escritores assim, como Isaac Babel (1894-1940), que por si só valem toda uma literatura. Não formam escola, não podem alimentar discípulos: criam eles próprios um estilo e um mundo singulares. Babel, como Kafka, é um exemplo extremo. Os dois opõem-se como autores, mas entre ambos há íntimas semelhanças, conexões viscerais. São judeus, e isso conta. Molda a massa do espírito. Muito jovens, assistiram a violentos pogroms. Um, Kafka, na Praga iluminada; outro, Babel, na Rússia ainda czarista. Este acabaria condenado sem causa, mimando uma das personagens de Kafka, sentenciada por uma força irracional, um braço invisível: conduzido à morte por fuzilamento aos 45 anos. Sem perceber porquê. Em pleno estalinismo, foi sumariamente julgado, levado sob tortura a confessar um crime cuja culpa desconhecia, desmentindo mais tarde a sua confissão forçada (como tantos), pedindo tão só que o deixassem acabar o seu trabalho.

Contos e Diários

, que a Relógio D’Água nos faz agora chegar em tradução portuguesa, é uma edição exemplar. Agrupa o essencial de

O Exército de Cavalaria

, contos diversos, textos de

O Diário de Petersburgo

e o

Diário de 1920

, precedidos por uma excelente apresentação do escritor nascido em 1894 em Odessa, cidade cosmopolita, multilíngue. Jornalista e escritor, Babel era um idealista e começou por defender o marxismo e o leninismo: acreditava então que o comunismo traria aos judeus igualdade de direitos. Não obstante, a sua relação com o credo bolchevique não assenta tanto em questões de justiça e de verdade, mas em termos de subjectividade e de emoção, da apropriação afectiva da palavra do líder. Assim se traduz o entusiasmo com que lê aos cossacos (que admira) um discurso de Lenine editado no

Pravda

, propagando o júbilo.

Conhecedor de várias línguas, incluindo o hebraico, que estudou (talvez por isso manipule e inove a língua em que escreve), Babel foi correspondente de jornais, escreveu teatro e guiões para cinema, chegando até a trabalhar com Eisenstein. Viu-se aplaudido (mais tarde, seria afastado, as suas peças proibidas). Mas é um encontro em São Petersburgo, em 1915, que muda a sua vida — quando conhece Máximo Gorki, que lhe publica alguns contos em diferentes revistas. Escreverá sobre ele: “Devo tudo a esse encontro e continuo a pronunciar o nome Alexey Maksimovich com amor e admiração”.

Parte deste volume assimila a sua experiência como repórter de guerra. Aquando da campanha da Polónia, segue a Primeira Armada de Cavalaria de Boudionny, durante o Verão de 1920. O Diário agrega notas esparsas que servirão certamente para a narrativa de O Exército de Cavalaria: “Pego numa ninharia (...) e faço dela uma coisa de que eu próprio não consigo desprender”, diz o próprio autor sobre os seus métodos. Estes textos são documentos preciosos: mais crus, mais críticos, mais imunes ao ideal comunista. Mais imundos, literalmente falando. Duvidando da inevitabilidade de tanta violência, de tanto fogo ateado, das violações, das pilhagens praticadas impiedosamente pelos cavaleiros cossacos do Exército Vermelho: “É o inferno, o modo como trazemos a liberdade é horrível.” E, afinal, os cossacos perseguem os judeus com a mesma violência dos polacos.

O Exército de Cavalaria

é uma espécie de epopeia revolucionária — foi bem recebida por uns, e amaldiçoada virulentamente por outros, nomeadamente Boudionny, que se sentiria, com razão, pouco presente. O Exército Vermelho, apesar da derrota da Polónia, tornava-se um mito popularizado: emblema de heroísmo, do esforço de uma nação a construir-se, deveria servir de educação e de incitamento dos soldados, e de atractivo para o alistamento de camponeses.

A narrativa tem presentes os topoi das canções de gesta e dos hinos revolucionários: as bandeiras desfraldadas ao vento celebrando vitórias, a bravura, o heroísmo, os cavalos (o cavaleiro cossaco exerce uma forte atracção sobre Babel). Ora, os combatentes, além de bravos, são também humanos — estão cansados, perdidos, são gratuitamente violentos, obscenos, grosseiros na linguagem. Movem-nos a comida, o sexo, o amor aos cavalos, os favores das enfermeiras (personagens aqui menos angelicais e mais grosseiras do que noutras gestas heróicas).

Babel diz que lê e relê o que escreve, que depura, que a sua frase é curta devido à asma. Todavia, é autor de imagens insólitas, surpreendentes, belíssimas. O seu estilo é vivo, ofegante, em crescendo, às vezes abrupto, de quando em quando subversivo na manipulação da ambiguidade, da ironia, do absurdo até. Estes são mais factores de dissonância do que de dissidência — embora haja de facto dissidência, e íntima, entre o fascínio inegável que Babel demonstra sentir pela selvajaria cossaca, assente em valores ancestrais, e a nostalgia pelo modo de vida imemorial dos judeus da Galícia.

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