Nostalgia e Guerra-Fria

É a sensação de “fim de festa” que dá corpo a esta novela

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Simone de Beauvoir: balanço crítico, "fim de festa"

De todos os escritores e pensadores que emergiram do movimento existencialista, Simone de Beauvoir terá sido a que melhor identificou, na sua obra, os choques entre os géneros, tanto na dimensão sentimental como na intelectual. No magistral estudo que é O Segundo Sexo, trabalho que engloba antropologia, sociologia, biologia e psicanálise numa escrita exemplar e imaginativa, deixou uma marca duradoura que alterou a percepção das relações entre os homens e as mulheres.

Em 1965, quando escreveu Mal-entendido em Moscovo, história destinada a integrar o volume A Mulher Destruída e depois retirada e publicada separadamente, Simone de Beauvoir tinha quase 60 anos. A sua relação muito particular com Sartre atingira uma determinada calma, depois de uma vida agitada, intelectualmente desafiadora e competitiva, politicamente marcante e fisicamente repleta de experiências tão exaltantes quanto difíceis, onde não faltaram os ciúmes, as recriminações e a violência muito burgueses.

Mas é a sensação de “fim de festa” (e de balanço crítico) que dá corpo a esta novela, uma espécie de duelo mental e emocional entre André e Nicole, ambos professores reformados, a caminho de Moscovo. No avião olham pela janela, lêem e meditam no facto extraordinário de estarem ali, juntos, sem comunicarem um com o outro, mas unidos pelo silêncio cúmplice e pelo hábito da companhia um do outro. Nicole sobressalta-se: “Teriam trinta ou sessenta anos?” O tempo prega-lhes partidas. São ainda um “casal”, conhecem bem — tirando alguns segredos — os traços, os corpos, os pensamentos de cada um. E estão a chegar, de novo, à URSS, nesses finais dos anos 60, quando os ideais marxistas começavam já ser contaminados pelo travo amargo da descrença. A “traição” por parte do bloco soviético estava prestes a culminar na “primavera de Praga” em 1968, com o reformista Dubcek a ser exonerado (1969) do seu curto mandato, perante a invasão dos tanques russos.

Em Moscovo, Nicole e André são recebidos pela filha deste último, uma jovem desembaraçada e pragmática. É Verão, o cheiro das bétulas invade o ar e após ultrapassarem a barreira da burocracia, horas de espera e a natural desconfiança em relação a estrangeiros, Macha, filha do primeiro casamento de André, serve-lhes de guia. Nicole tem uma excelente relação com a enteada e André, que não acompanhou o crescimento da filha, vê nela o ideal feminino “socialista” que sempre o seduziu: uma mulher sem constrangimentos, senhora da sua vida e das suas opiniões, directa e franca, de certa forma o oposto das mulheres ocidentais (francesas) enredadas, ainda, em preconceitos e fraquezas. André está decidido a aproveitar ao máximo a estada num país que ainda representa, para ele, um ideal social, político e sentimental. Quer descobrir o que mudou desde a última visita em 1963 e, se possível, recuperar um vigor perdido em Paris, onde continua a ser uma personagem de referência — sucedem-se os colóquios, as conferências, os encontros e as reuniões e discussões com amigos — mas onde lhe falta já o entusiasmo que marcara, desde sempre, a sua existência. Quanto a Nicole — a autora vai alternando as perspectivas de um para o outro membro do casal, ao longo de 24 curtos capítulos, distribuídos equitativamente — só deseja estar a sós com André, longe dos afazeres e da rotina caseira, e recuperar a intimidade e a intensidade da longa relação.

No entanto, entre Nicole e André, o desencontro — o “mal-entendido” do título — é quase total. André comporta-se como um adolescente — bebe de mais, quer estar sempre em movimento, prefere a companhia da filha, resolve aprender russo e passa horas a tentar decifrar o Pravda — e Nicole acha-se feia e desajeitada, as roupas servem-lhe mal, o ruído nos restaurantes e o silêncio das ruas são incomodativos, os lugares que visitam não lhe transmitem o deslumbramento que sentiu quando os viu pela primeira vez, as torneiras não deitam água, o trânsito é demasiado lento, o turismo é ainda uma miragem, são precisos vistos para se deslocarem, tudo a aborrece e enche de tédio. Habilmente, Simone de Beauvoir constrói uma permanente batalha conjugal surda entre Nicole e André, com alusões aos mal-entendidos, às discrepâncias de sensações, às fantasias e conclusões que se acumulam à medida que os dias passam. A estranheza dos lugares, as experiências vividas de forma diferente por cada um deles — guiados pela inefável Macha, elemento indispensável nos eternos triângulos criados pela dupla Sartre/Beauvoir — criam um fosso cada vez mais amplo, mais vertiginoso. Nessa separação involuntária, nessa espécie de “terra-de-ninguém”, numa Rússia sonhada e idealizada, a visão um do outro, agudizada pela ausência de referências e rotinas habituais, torna-se cada vez mais nítida e, obviamente, conflituosa e dolorosa.

É desta forma subtil que de Beauvoir chega ao fundo das questões que sempre abordou e discutiu: a crise existencial em toda a sua dureza, a incompreensão entre amantes, e, muito especialmente, a velhice, o passar do tempo e o desapontamento, tanto em relação ao corpo que os trai (Nicole sente-se demasiado cansada, ao deambular pelas infindáveis avenidas moscovitas, e André não passa sem a bebida), como ao enfado dos sentimentos. O desencanto do relacionamento físico e intelectual equipara-se à desilusão com os resultados práticos de uma ideologia, por eles defendida na juventude e na maturidade, que os formara, que fizera deles o que são e que se está a desvanecer — como eles próprios, como a própria História. A crise conjugal que os empurra para esta viagem obriga-os a enfrentar os desmandos ideológicos e a desagregação de uma política que prometera um futuro radioso de felicidade, liberdade e igualdade. Tal como acontece com os amantes, as sociedades têm dificuldades em estar à altura das utopias.

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