No escuro

Os filmes de Kelly Reichardt vêm tacteando uma América que hoje, com o desaparecimento das grandes narrativas, já só existe no escuro. É aí que eles manobram, três activistas ambientais.

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Com Old Boy (2006) e Wendy e Lucy (2008), Night Moves (2013) é o filme de Kelly Reichardt que mais próximo chega do desaparecimento — aquela existência precária de filme-fantasma que ameaça desvanecer-se em que a cineasta norte-americana, que também é professora de cinema, consegue conter os filmes quando não, como aconteceu com O Atalho, em 2010, é tomada pelo desejo académico de fixar a História. Gostamos dela quando ela escuta a História que desapareceu.

Os filmes de Kelly Reichardt vêm tacte­ando, como se procurassem no escuro, uma América que hoje, com o desaparecimento das grandes narrativas, já só pode existir num mundo para­lelo — não é só uma “imagem”, Kelly tem ido mesmo à procura, percorrendo o mapa do Nororeste americano, de uma geografia humana, como quem vai atrás dos sons que se ouvem ao longe do silvo dos comboios. Era o que acontecia mesmo em Wendy e Lucy, a rapariga e a sua cadela, e em Old Boy insinuava-se o som de um programa radiofónico — era a forma de Reichardt falar da forma como os anos Bush arrasaram com a paisagem liberal americana, condenado-a à escuridão. Mas independentemente de a narrativa dos filmes materializar esse tipo de chamamento, é assim que eles nos falam, do escuro, apelando a uma disponibilidade para a escuta, para ouvirmos algo que já não conseguimos ver: (o que resta de...) um património, social, político, cin­e­matográ­fico.Se são filmes de um género que já não existe, o “cinema liberal” ou o “cinema político” — e também podia ser o
western —, são filmes que, tal como as personagens têm dificuldade em protagonizar o seu destino, em ascender a mestres da sua narrativa, não podem deixar a zona de sombra sob a pena de se desintegrarem.Night Moves
: e assim eles manobram, na noite, três activis­tas ambi­en­tais (Jesse Eisen­berg, Dakota Fan­ning e Peter Sars­gaard) que se jun­tam para, con­cretizando o seu ide­al­ismo e o seu dog­ma­tismo, fazerem explodir uma cen­tral hidroeléc­trica. Jesse, Dakota e Peter inter­pre­tam per­son­agens que são recon­hecíveis do uni­verso de Reichardt e do escritor com quem a realizadora trabalha, Jonathan Raymond. Na sua difi­cul­dade de des­pertarem empa­tia no espectador, na sua obsessão, no seu mutismo. Nessa actividade de rad­i­cais razoavel­mente amadores, acabarão por ser ultrapassados pelas circunstâncias (como os “terroristas” da Terceira Geração de Fassbinder) e causar “danos colat­erais” — a morte de um camp­ista que per­noitava na zona da explosão. Mas, por essa altura, Night Moves é já só noite (espan­toso tra­balho de fotografia de Christo­pher Blau­velt) e ambigu­idade moral, como num western de Anthony Mann: per­son­agens cer­cadas como numa prisão, grades no ide­al­ismo.

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