Morrissey não é mais infeliz do que os outros

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Nos melhores momentos da autobiografia de Morrissey, ouvimos nas entrelinhas o que podia ser uma nova canção dos Smiths. Nos piores, o exercício pode ser fastidioso

Para Morrissey, escrever uma autobiografia poderia ser o supremo gesto para acabar consigo mesmo, mas acreditamos noutra hipótese: ele quer definir o mito nos seus próprios termos

“A minha infância são ruas sobre ruas, sobre ruas, sobre ruas”, escreve Morrissey. É a frase inaugural da autobiografia do cantor, acabada de editar. Mergulhamos num parágrafo que dura cinco páginas e no qual o cantor dos Smiths fala da Manchester dos anos 60, cidade de casas abandonadas em que as crianças entram para passar o tempo, isto quando não estão a matar ratos à pedrada. 

“Os pássaros abstêm-se de cantar na Manchester pós-industrial, onde os anos 60 não ‘swingam’” e os habitantes estão “proibidos de serem românticos”. “O processo comum de viver tira o tempo e a energia a toda a gente.”

Morrissey descreve a preto e branco a infância em Autobiography, o livro que há uns anos ninguém acreditava que pudesse vir a existir. E descreve a adolescência, que pinta em tons não muito diferentes — até que uma banda lhe salva a vida: os Smiths. Fá-lo sempre entre o detalhe e a elipse, conforme as suas ainda indecifráveis vontades, ao longo de 457 páginas sem capítulos que facilitem ou dividam a história em temas ou épocas.

Morrissey — o miserabilista que é uma estrela mundial, o alegado racista, o vegetariano militante, o celibatário, assexual, que não é hetero nem homo nem bissexual — era talvez o músico pop que concentrava em si maiores doses de mitologia e identificação colectiva. Era e deverá continuar a ser, mesmo que Autobiography esclareça muitos elementos da sua vida. 

Os mitos fazem-se do que não se sabe — e talvez por isso estejam habitualmente reservados para os mortos. Para Morrissey (ou “Moz”, como é também tratado), um mito vivo, escrever uma autobiografia poderia ser o supremo gesto para acabar consigo mesmo, mas acreditamos noutra hipótese: Morrissey quer colocar o mito nos seus próprios termos.

Autobiography reforçou o amor dos adeptos e o ódio dos detractores e inimigos. Há quem, como Terry Eagleton, professor de literatura inglesa, veja em Morrissey potencial para vencer, se inaugurar uma carreira de ficcionista, o Man Booker Prize. Outros encontram nesta autobiografia a confirmação de uma personalidade egocêntrica, reforçada pela exigência à Penguin para que editasse a obra pela Penguin Classics, estatuto reservado a autores como Platão, James Joyce e Oscar Wilde. A decisão valeu críticas à editora. 

O que pretende Morrissey, com 54 anos, ao contar a sua história à sua maneira é coisa que não sabemos. Já não edita um álbum de originais desde 2009 (o vigorosoYears of Refusal) e, este ano, cancelou concertos por motivos de saúde. Mas Autobiography vendeu 35 mil cópias no Reino Unido na semana de lançamento e chegou ao primeiro lugar do top britânico de vendas. Já há muito tempo que Moz não despertava tantos amores e ódios.

Lendo Autobiography, não raras vezes sentimos que Morrissey flutua sobre os acontecimentos da sua vida, como se fosse um estranho a olhar para ele próprio. Nos melhores momentos, ouvimos nas entrelinhas o que podia ser uma nova canção dos Smiths. Nos piores (felizmente raros), o exercício pode ser visto como fastidioso: há, por exemplo, 50 longas páginas a descrever o processo judicial movido, nos anos 90, por Andy Rourke e Mike Joyce, que contestaram o facto de Morrissey e Johnny Marr receberem mais dinheiro do que eles enquanto membros dos Smiths.

Arte ou morte

Talvez Steven Patrick Morrissey só exista hoje porque Morrissey, o cantor pop, passou a existir. “Na hora do nascimento dos Smiths, sentia-me no fim físico e emocional da vida”, confessa. A primeira vez que canta, em 1978, ainda antes dos Smiths, tem uma epifania: “A história tinha-me enjaulado durante demasiado tempo e eu tinha que ser libertado.” Os Smiths formam-se e, “pela primeira vez” na vida, “o futuro é mais importante do que o passado.”

Mas do passado ninguém escapa, muito menos Morrissey. “Os anos em St. Mary podem ter-me afectado para sempre”, admite. “A escola secundária de St. Mary, na rua Renton, em Stretford [arredores de Manchester], pode ser, de facto, secundária, mas não é moderna”, brinca, com a graça que exibe nas canções. Mas a tragédia começara antes: “Naturalmente, o meu nascimento quase mata a minha mãe porque a minha cabeça é muito grande.”

O ensino rígido da Inglaterra de então, no qual imperavam os castigos físicos, limitava-o, tornava mais nublados os dias ingleses. Encontrou refúgio na poesia e na música. Entre os poetas, estão alguns que já sabíamos serem apreciados por Morrissey, mas há outro, menos célebre: A. E. Housman (1859-1936), sofredor, “vulnerável e complexo”, como ele. “A dor impingida a Housman permitiu-o destacar-se dos medíocres e encontrar palavras que a maioria de nós precisa de ajuda para poder dizer.” Uma multidão poderia dizer o mesmo sobre o ex-Smiths. 

Na música, encontrou uma santíssima trindade: o recentemente falecido Lou Reed (em jeito de homenagem, uma versão de Satellite of love gravada ao vivo por Morrissey será lançada a 2 de Dezembro, no mesmo dia em que Autobiography será editado em audiolivro), Iggy Pop e Patti Smith, “cantora sem género” na capa deHorses, e uma galeria de notáveis: Joey Ramone (“Parecia que tinha sido assassinado numa cama do hospital. Encontrei o meu gémeo”), Marc Bolan, os Sex Pistols… 

Jerry Nolan, travestido na capa da estreia dos New York Dolls, foi a “primeira mulher” pela qual se apaixonou. “As raparigas continuavam a sentir-se misteriosamente atraídas por mim e eu não fazia ideia porquê.”

Estava destinado ao palco. “Toda a actividade humana é inútil quando comparada com as raparigas e os rapazes que cantam na televisão pop, porque eles encontraram a resposta enquanto o resto de nós procura a pergunta. Eu cantarei também. Se não, terei de morrer.”

Aos 17 anos conclui: “Não posso continuar como membro da audiência”. Pouco depois, começa a cantar: primeiro nos Nosebleeds, pouco tempo; depois nos Smiths, que o salvam ao mesmo tempo que mudam o mundo pop. 

Os Smiths são um assunto muito sério para Moz — enquanto existem, são a sua vida, a julgar por Autobiography. Julgava que durariam “pelo menos 30 álbuns”, contaria ao cúmplice Michael Stipe (R.E.M.), mas só viveram quatro.

É já bem depois dos Smiths, o “primeiro prazer” da sua vida, que tem a primeira relação séria, com Jake Walters, que lhe bate à porta após uma saída abrupta de um restaurante “onde animais mortos são servidos como comida”. “Ele entra [em casa] e fica por dois anos”, recorda. Moz tinha 35 anos. “Pela primeira vez na minha vida, o eterno ‘eu’ torna-se ‘nós’”, “cada minuto tem o drama do primeiro amor”. 

Outras relações amorosas surgem nestas páginas, nomeadamente com Tina Dehghani, iraniana criada em Los Angeles, com quem chega a discutir a hipótese de terem um “monstro choramingas em miniatura” (Morrissey vintage — ele nunca diria “bebé”). Pouco mais é dito sobre Jake, Tina ou o romano “Gelato”, sobre a evolução destas relações e sobre como as “escondeu” dos olhares dos fãs e da imprensa, mantendo o mistério em torno da sua vida sexual. 

Depois da edição de Autobiography, Morrissey emitiu um comunicado para “esclarecer” a sua sexualidade. “Infelizmente não sou homossexual. Tecnicamente, sou humassexual. Sou atraído por humanos. Mas, claro… não muitos.” Esclarecidos? Felizmente não.

É Morrissey a rir-se de si mesmo, como faz no livro, quando relata um pequeno-almoço com um velho ídolo, em 1992. David Bowie diz-lhe: “Sabes, tive tanto sexo e tantas drogas que não consigo acreditar que ainda estou vivo. Morrissey responde-lhe: “Sabes, tive tão POUCO sexo e POUCAS drogas que não consigo acreditar que ainda estou vivo”.

“Jesus, sou amado”

Nos anos dos Smiths (1982–1987), Morrissey desperta as atenções do meio pop britânico. A EMI quer contratá-los, dizendo-lhes que “são os novos Beatles” e que estão a “desperdiçar talentos com a Rough Trade”. Para os media, os Smiths são cada vez mais Moz — o que, diz o cantor, ataca o “cordão umbilical” entre ele e Johnny Marr. 

Gasta poucas páginas nesta fase da sua vida — tradicionalmente vista como a mais importante em termos artísticos. Passa a correr sobre os discos dos Smiths, perdendo mais tempo a criticar Geoff Travis, o patrão da Rough Trade, e outras personagens, bem como a má sorte, que, numa aliança infernal, impediam o quarteto de subir mais nas tabelas de mais vendidos. O mundo está sempre contra Moz.

Ao longo da sua vida pública, Morrissey enfrentou várias acusações. A mais grave será a de racismo, com os acusadores a apresentar como supostas provas canções como Bengali in platforms. Admite ser de trato difícil (“Sou impossível”), mas não perde muito tempo a justificar as suas polémicas.Mas no final de Autobiographynão resiste a citar um concerto na Califórnia em que não vê “caras caucasianas” — uma “resposta notável” aos jornalistas londrinos que o “enforcariam” enquanto racista por “ter ousado cantar sobre racismo”.

Deixa Inglaterra depois de perder o processo movido por Rourke e Joyce, angustiado com a justiça inglesa. Encontra refúgio em Los Angeles, onde tem como vizinhança palmeiras, Johnny Depp e ratos do deserto.

“Estou sozinho e isso é bastante normal”, escreve sobre esta primeira fase da vida nos Estados Unidos. Poucas pessoas o acompanham muito tempo ao longo da vida, confirma a autobiografia. Por alturas de You Are The Quarry (2004), o produtor Jerry Finn, pergunta-lhe: “Nunca te cansas de cantar ‘eu’, ‘eu’, ‘eu’, ‘eu’, ‘eu’, ‘eu’, ‘eu’?”. Resposta indignada: “Eu?”

Os jornais ingleses falam do “declínio” do emigrado Moz, mas é depois de sair de Inglaterra que encontra alguma paz de espírito e “felicidade”. Como quando fundou os Smiths, volta a ser na arte que se encontra a si mesmo, que sente amor. “Jesus, sou amado. Nunca tendo encontrado amor de uma pessoa, encontrei, em vez disso, de milhares — ao mesmo tempo, na mesma sala.”

Num concerto em Helsínquia, em The last of the famous international playboys, depois do verso “Have I failed?”, a multidão grita: “Nãoooooooo!”. Em São Paulo, o povo leva em braços, até ao palco, uma rapariga cega. A jovem entrega um papel a Moz: “Não te posso ver, mas adoro-te”. No México, encontra jovens que tatuam no corpo letras dos Smiths. O livro termina numa destas noites bem-sucedidas, em Dezembro de 2011, em Chicago.

“Eles”, os fãs, “dão-me o direito de viver”, conclui. “Não sou mais infeliz do que qualquer outra pessoa.”

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