Monólogo do ditador enquanto deus fálico

Retrato escatológico de uma ditadura — povoado de referências indirectas ao país do autor, Angola

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Adriano Mixinge vale-se da tradição literária latino-americana, de que é herdeiro, para compor uma narração delirante e amoral Rosa Cubillo

Entrar na cabeça de um ditador para ver o mundo de forma distorcida é uma atracção para muita gente, escritores incluídos. Essas personagens maiores do que a vida, que tendem a julgar o mundo pequeno de mais para o tamanho do seu ego, são demasiado tentadoras. Estão mesmo a pedir uma porta como a que Charlie Kaufman encontrou para entrar na cabeça de John Malkovich no filme de Spike Jonze.

Norberto Fuentes escreveu a sua Autobiografia de Fidel Castro que não é auto, nem biografia, mas obra de ficção; Gabriel García Márquez havia criado antes O Outono do Patriarca, que Adriano Mixinge cita directamente como referência, onde se descreve uma ditadura latino-americana fictícia para mostrar de que matéria se faz um déspota; Mario Vargas Llosa conta a ditadura dominicana de Trujillo em A Festa do Chibo; bem antes, o guatemalteco Miguel Ángel Asturias escrevera essa obra-prima do género que é O Senhor Presidente.

Isto só para citar alguns exemplos daquilo a que se costuma chamar “romance do ditador”, subgénero em que este O Ocaso dos Pirilampos se encaixa perfeitamente. Apesar de angolano, Mixinge é um herdeiro da tradição literária latino-americana — tendo estudado em Cuba desde os 11 anos e passado grande parte da sua vida na ilha caribenha e em Espanha, onde hoje exerce o cargo de adido cultural da Embaixada de Angola em Madrid.

Aquilo em que este livro se distingue da maioria dos seus congéneres é no assumir da narração pelo próprio ditador, sem espaço para nenhuma perspectiva se não a própria, num monólogo delirante e amoral, que tem o começo mais peculiar que se pode encontrar na literatura em língua portuguesa: “Ouvi um barulho estranho, persistente, ora abafado, ora agudo. Deu-me vontade de urinar. O que urinei encheu-me de maravilha: começaram a sair aviões e mais aviões da minha uretra, enquanto todo o meu corpo cavernoso, a minha glande e o meu prepúcio pareciam estalar.”

Um ditador com cancro na próstata, deixando correr a escrita em catadupas de pensamento verrinoso, num fluxo amoral e acrítico que às vezes é lúcido na sua visão dos outros sem nunca perder esse lado de delírio febril de quem se julga “dono do tempo, da geografia e da ideologia”, confundindo corpo e país: “Os rios do meu corpo coincidem com as comichões da nação.”

O tom escatológico de toda a narração nunca se perde, bem como o falocentrismo de uma cultura machista que coloca ao mesmo nível as conquistas do pénis e a força das ideias e das lutas — “Da minha uretra saem estradas, escolas, hospitais, arranha-céus, autoestradas, fábricas, centros comerciais e de lazer, produtos de todo o tipo.”

Por entre todo o delírio narrativo — e uma das conquistas do escritor é a sua capacidade de deixar que as águas desse rio de prosa corram revoltas dentro das suas bem vincadas margens —, o que fica para trás são os sedimentos de uma sociedade lutada em tons idealistas, pintada com a broxa da avidez e da ganância e espreitada com a película do cinismo que tudo contorce e justifica. A corrupção como “verdadeiro motor do mundo” e o mal e a desgraça como “um impulso transformador”.

Não tem o livro contemplações no seu retrato (duro, visceral), a não ser o de deixar por nomear ditador e geografia; e há nele suficientes pistas para facilitar o processo de reconhecer de que pirilampos se fala. Porém, ao recusar deixar-se amarrar no desígnio da denúncia, e abdicar do carácter universalista da reflexão, assume a condição de obra literária e a vontade de ser maior do que o ditador que nela fala. E da Angola de que parece estar a falar.

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