Kendrick Lamar, íntimo e universal

Depois do sucesso esmagador do seu último disco, o rapper americano podia ter soçobrado no novo álbum. Mas não. Reivindicando a tradição cultural afro-americana, em To Pimp A Butterfly disseca-se a si próprio e ao mundo em redor.

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Há cerca de um ano, quando falámos com Kendrick Lamar, na véspera da sua estreia em palcos portugueses (dar-se-ia no festival NOS Primavera Sound do Porto), este dizia-nos que o próximo álbum iria naturalmente reflectir a circunstância de a sua vida ter mudado, depois da edição, em 2012, de Good Kid, m.A.A.d City.

Assim aconteceu. Depois da edição dessa obra, a sua existência modificou-se definitivamente. Tornou-se numa superestrela. Adveio a fama e com ela também a pressão. Se a anterior obra era um conto hiper-realista sobre o quotidiano em Compton, o bairro na Califórnia onde cresceu, no novo disco abraça novas inquietações, novos medos e novas esperanças.

Há um ano dizia-nos que quando escreve fá-lo a partir de si. As preocupações são pessoais, mas com esperança de serem apreendidas genericamente. Desta vez, sem deixar de lado inquietações interiores, revela preocupações sociais e políticas.

É um disco pós-tumultos em Ferguson. Se no disco anterior quase não saíamos de Compton, desta vez Kendrick Lamar faz-nos viajar pelo globo (à prisão, na África do Sul, onde esteve Nelson Mandela, por exemplo) tal como ele fez nos últimos anos. Agora é a vez de lidar com as questões decorrentes do seu êxito e também de se ter tornado numa voz credível da consciência negra.

A sua história está longe de ser virgem no universo hip-hop. Existem muitos rappers que vivenciaram histórias semelhantes. A sua identidade é forjada num contexto local e, quando alcançam sucesso e abandonam esse enquadramento, acabam por viver situações de conflito. Não surpreende que o sentimento de culpa por ter abandonado o seu bairro de sempre acabe por ser um dos temas presentes no novo lançamento, To Pimp a Butterfly.

A diferença de Kendrick Lamar, 27 anos, não é a sua história, mas sim a forma como se conta a si próprio e à realidade em redor, sendo tão vulnerável como desconcertante ou irónico.

No disco anterior, contava a história dos que vagueiam pelas ruas sem aspirações de futuro ou dos que lutam por sair das zonas onde cresceram sem renunciarem às suas origens. Agora reivindica o legado da cultura afro-americana, a começar pela figura do escritor Wallace Thurman, cujo livro The Blacker the Berry: A Novel Of Negro Life (1929) serve de inspiração.

Musicalmente, é um disco repleto de influências que remetem para a génese da música negra com elementos de funk, jazz, soul e spoken-word, ou seja, algumas fontes que originaram o hip-hop e um tributo a pioneiros como George Clinton, Gil Scott-Heron, Sly Stone, Marvin Gaye ou Curtis Mayfield.

Não é por acaso que o disco começa com Wesley’s theory, reflexão sobre a forma como alguns artistas negros foram consumidos pelo mundo do espectáculo (como o actor Wesley Snipes). É uma canção que inicia com o som de uma agulha sobre um disco de vinil, ouvindo-se “every nigger is a star”, antes de a voz de George Clinton, a batida de Flying Lotus e o baixo cósmico de Thundercat entrarem em cena, instituindo uma atmosfera que remete de imediato para os anos 1970.

Trata-se de um álbum que pode ser digerido a partir de vários níveis de leitura. Em For free?, canta satiricamente “this dick ain’t free”, por entre movimentos jazzísticos, enquanto em Institutionalized interroga a estrada sinuosa do triunfo. Em King Kunta é universal, abordando questões raciais, fazendo referência a Kunta Kinte, o escravo rebelde que inspirou a histórica série de TV Raízes, mas em U mergulhamos no universo introspectivo de alguém emocionalmente angustiado.

 Cinco décadas de música negra

Numa entrevista recente ao New York Times, dizia que a sua função é retirar à cultura hip-hop a costela de efabulação, atribuindo-lhe mais veracidade. Mais uma vez, nada que não tivesse sido proclamado inúmeras vezes da boca dos mais diversos rappers, mas que no seu caso possui verosimilhança.

No novo álbum, volta a mostrar que é liricamente mais complexo do que a maioria e que consegue conjugar palavras e música numa sonoridade que alia familiaridade e novidade, misto de vibração funk, balanço soul, notas jazzísticas e palavras mais ditas do que cantadas, integradas num hip-hop cósmico. Não é uma obra de ruptura. Não inventa um vocabulário próprio. Mas é música densa, luxuriante e generosa, que actualiza cinco décadas de música negra.

Acaba por constituir uma obra onde nos devolve a sua versão da história da música negra de forma madura e também ética. Nesse movimento acaba por aproximar-se mais de personalidades como Mos Def ou Erykah Badu, conscientes dos princípios afro-americanos, do que de Kanye West ou Drake, talvez os dois rappers contemporâneos de maior impacto.

É um disco onde junta ícones de diversas gerações da música negra (de Clinton a Pharrell Williams, de Snoop Dogg a Bilal, de Flying Lotus ao falecido Tupac Shakur) e se interroga sobre o que significa assumir o novo papel de celebridade sem perder de vista as raízes culturais perante as tentações do sucesso. 

Depois do êxito esmagador – e algo surpreendente perante a fragmentação do mercado dos últimos anos – do seu último álbum, poder-se-ia imaginar que Kendrick Lamar falharia desta vez. Mas não. Tornou-se numa voz ainda maior da música popular. Alguém que é capaz de nos devolver o seu universo íntimo, reflectindo ao mesmo tempo sobre as convulsões do presente, de forma inteligível e emocionalmente calorosa. 

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