Ilustrar não é só desenhar

Corbel não consegue dissociar o acto de ilustrar da sua experiência em Portugal

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Alain Corbel: "Ilustrar, para mim, é estar em Portugal" Rita Pimenta, Vera Moutinho

Alain Corbel, bretão, ilustrador e professor, viveu em Portugal durante dez anos e gostaria de ter cá ficado, mas não conseguia pagar as contas. Trabalha agora em Baltimore, EUA, no Maryland Institute College of Art. Sempre que pode, volta. Fomos encontrá-lo em São João do Estoril, enquanto ilustrava a edição da Granta dedicada a África – outra das geografias amadas.

Veio para Lisboa em 1997 e conseguiu viver dos seus desenhos até 2007. No entanto, Alain Corbel diz não se sentir ilustrador. “Ilustrar não foi uma escolha à partida. Foi um ganha-pão durante o tempo que passei em Portugal. Quando cheguei, o meu objectivo era outro: era confiar no meu talento e conseguir trabalhos. Poder caminhar sozinho, fazendo obras como banda desenhada, pintura e outras coisas. Mas depois veio a realidade…”, diz ao PÚBLICO, na sua mais recente visita a Portugal. “E a realidade é ter de pagar as contas no final do mês”, acrescenta o também professor, para quem “ilustrar não é só desenhar, é também o contacto com as pessoas, o prazer que podemos ter” com elas.

A palavra “prazer” repete-se bastante no discurso de Alain Corbel, que nos recebeu em casa de um amigo, em São João do Estoril, descalço e descontraído, depois de nos ter ido buscar à rua, com uma criança ao colo e duas pela mão: três filhos com África na pele. A filha mais velha é adulta, vive em Lisboa e tem a cor europeia dos pais.

Corbel não consegue dissociar o acto de ilustrar da sua experiência em Portugal: “Foi o facto de estar em Lisboa e não viver em Paris, um mundo mais violento, mais fechado, com menos ternura. Para mim, ilustrar é estar em Portugal.” Até pelos grandes amigos que fez (e mantém), que tanto lhe emprestam a casa, como uma cadeira de bebé ou tempo de conversa à mesa. “São como irmãos.”

Mesmo depois de ter vencido o Prémio Nacional de Ilustração 2002 (Contos e Lendas de Macau, texto de Alice Vieira e edição da Editorial Caminho), o que as editoras e a imprensa pagavam pelos seus trabalhos não permitiu que continuasse a viver aqui. A exposição que lhe foi dedicada no ano seguinte no Festival de Banda Desenhada e Ilustração da Amadora acabaria por motivar a sua ida para os Estados Unidos.

O artista e professor espanhol José Villarrubia viu-a, deu a conhecer o ilustrador no Maryland Institute College of Art e Alain Corbel foi convidado para leccionar naquela universidade, apesar de na altura não falar inglês. O convite deu-lhe estabilidade, mas não alegria: “Foram os dois anos [de 2007 a 2009] piores da minha vida de adulto. Foi muito, muito duro. E não podia voltar para trás.”

Conta o que se seguiu: “Em 2009, consegui dar a volta. Vim cá com um grupo de alunos americanos e percebi que conseguia organizar estas viagens facilmente. Então, fui falar com a escola para ver se podia organizar uma viagem igual, mas em África.” Aceitaram. Agora, anualmente, vai a São Tomé e Príncipe com os alunos. E assim sempre “foge” temporariamente dos EUA.

Ter memória visual, mas não copiar
Para Alain Corbel, os estudantes americanos diferem dos portugueses no profissionalismo: “De uma certa forma, são muito mais profissionais. Exigem de nós muitas coisas, mesmo que sejam coisas erradas. Gastam tanto dinheiro para estar na escola que precisam mesmo de trabalhar. Isso faz com que cumpram as regras. Como não se atrasarem, por exemplo. Temos alunos que são melhores do que os professores. São mesmo muito bons.”

E o que é ser um bom aluno em ilustração? “É um aluno que tem uma boa memória visual e ao mesmo tempo não tenta copiar nem criar um estilo para ganhar a vida logo a seguir à sua formação. Ou seja, não [querer] entrar imediatamente numa companhia grande. É uma pessoa que confia no seu talento, arrisca e consegue.”

No entanto, até pela sua própria experiência, compreende a urgência de muitos deles em arranjarem emprego de imediato em ilustração, “são estudantes e ao mesmo tempo estão a trabalhar noutras áreas, não é um mundo fácil”.

Ainda assim, Alain Corbel prefere “o caos” dos alunos portugueses: “Dei algumas aulas no Ar.Co [Centro de Arte e Comunicação Visual]. Há caos porque do lado dos professores não há pressão. É mais uma relação de amizade [entre alunos e professores], o que é muito melhor para mim, no sentido de estar com alguém, ensinar, partilhar um ensinamento, mas não uma matéria técnica. Como uma partilha, um ritual artístico, um prazer.”

Mas o prazer maior é estar em África com grupos de crianças e adolescentes num trabalho contínuo, como já teve oportunidade de fazer em vários países daquele continente e também em Timor-Leste: “Quando estou em África ou em Timor, quase não preciso de desenhar. Tenho um prazer imenso só em estar lá com as pessoas e em ajudá-las, sobretudo crianças, adolescentes ou jovens adultos. Partilhar, ajudar a fazer desenhos, pequenas narrativas. Sinto-me criativo a ajudar essas pessoas, a falar com elas, a ver como vivem. Quase não preciso de desenhar.”

Encolhe os ombros e compara-se com os amigos e com os estudantes americanos: “Eles não estão muito preocupados com o quotidiano das pessoas, preferem carregar os seus diários gráficos. Eu não, prefiro beber uma cerveja e estar lá a falar com as pessoas do que fazer qualquer outra coisa.” E conclui, divertido: “Tenho um lado muito preguiçoso.” 

No entanto, todas essas vivências e atmosferas são transpostas mais adiante para os desenhos que faz, como os que estava a criar para a edição sobre África da revista Granta enquanto decorria a entrevista. Um trabalho mal pago, mas que não conseguiu recusar: “Eu não tinha ideia dessa revista, parece que é bastante conhecida na Inglaterra e nos Estados Unidos. Mas o tema é África e apanhou-me pelo lado bom.”

Se fosse noutro país, não aceitaria. “Não é pelo prestígio que faço este trabalho, é pelo prazer. Prazer de ler os textos e no fim ver o meu trabalho ligado a pessoas que estimo.”

À procura do estilo
Enquanto falava, íamos vendo nascer a imagem que possivelmente acompanharia o texto de Sousa Jamba, “é angolano, mas talvez tenha vivido em França porque escreveu em francês, não em português”. Conta um pouco da história: “Um jovem volta para Angola. Num encontro, há um homem que fica comovido por vê-lo porque sabe que a mãe dele [do jovem] assistiu ao seu nascimento. Mas nenhum dos homens está no seu estado normal. Estão bêbedos.”

O ilustrador descreve o que vai pincelando com guache preto sobre acetato: “Queria desenhar pessoas a preto e branco. Mas não queria pôr muitos homens. Só um, mas com matéria, com textura, uma coisa carregada. Do outro, só mostrar as calças, limpas, mais elegante, mais leve. E simplesmente apanhar esse contraste. Depois, posso digitalizar.”

                                                    Ilustração de Alain Corbel

E faz contas: “Trinta cêntimos o acetato, isto [folha branca A4] também não custa nada, dois euros o guache, os pincéis são chineses, superfracos e baratos. Com um bocado de esforço, faço uma coisa boa.” Ri-se.

Corbel explica a sua relação com o material que escolhe: “Tem de ser o meu escravo, não pode resistir. Se o material começar a resistir, sinto mal-estar, não consigo trabalhar. Tem mesmo de ser um prolongamento da minha mão, da minha mente. Tem de ser maleável, flexível, só assim é que tenho prazer. E sem prazer não consigo trabalhar.”

Também revela a forma como parte para uma nova criação: “O problema que tenho sempre é em encontrar o estilo. Um quebra-cabeças porque tenho várias portas para entrar. Uma primeira porta, que seria a maior, é: como posso fazer isso rapidamente, poupando tempo e trabalhando menos.” Mas nem sempre resulta. “De facto, é sempre a porta maior, mas depois é a pior. Faço tentativas para encontrar uma forma rápida de trabalhar e afinal de contas passo [perco] mais tempo com isso, porque estou a fazer muitas experiências. É um bocado o caso para este trabalho.”

Dá o exemplo do texto de Mia Couto para esta edição da Granta, em que o autor fala sobre como é ser escritor. “Um texto muito bonito, mas muito complicado. Não é abstracto, não tem muitas sugestões. Ele conta mesmo factos: identifica a casa da sua mãe, a rua que estava perto da casa da mãe, a varanda onde ele brincava. Podia fazer um desenho bastante realista, mas também não quero ser redundante.”

Desvenda um pouco mais da história para clarificar a forma como passa da leitura de um texto para uma imagem que o possa traduzir: “Acho que era um amigo dele que tinha uma noção muito mais cartesiana do que ele próprio. Uma pessoa que acreditava mais nos espíritos. E ele [Mia Couto] começou a pensar de uma outra forma acerca da realidade.”

                                                             Ilustração de Alain Corbel

Corbel identifica-se bastante com estes mundos: “Eu, que nasci no campo, entendo isso perfeitamente. Se fosse falar sobre a maneira como nasci, eu podia dizer que a minha matriz não foi só a minha mãe, foi a terra. Podia ser uma beterraba, um fruto da terra. Porque faz sentido. Como pessoas, somos um pedacinho de um todo, de coisas, temos essas ligações todas com as coisas da terra, incluindo os espíritos. Sou muito animista, não na minha religião, porque não tenho religião nenhuma, mas na minha maneira de ser e de pensar.”

Tudo isso se transporta depois para as imagens a criar. “Quando resolvi fazer uma ilustração do Mia Couto, tinha de ser uma coisa metafórica, onde eu pudesse falar da minha própria experiência e que o resultado final, o desenho, fosse entendido de uma certa forma. Ao mesmo tempo, não tenho muito medo porque, mesmo que eu fizesse uma coisa completamente abstracta, existe o texto. E o texto não é nada abstracto, portanto…”

Mas tem de haver ligação, ou não? “Tem de haver uma ligação, sim. Mas pode ser muito ténue, frágil, mas é uma ligação. Não quero contrariar o Mia Couto”, conclui divertido.

Vozes de nós
A sua paixão pelo continente africano resultou em (e de) vários projectos com a Associação para a Cooperação entre os Povos (ACEP), uma organização não governamental com sede em Lisboa, alguns com textos de Pedro Rosa Mendes. Fala-nos agora de Vozes de Nós, trabalho que decorreu de 2010 a 2013 e levou à edição dois belos livros. Antes, já tinha realizado Notícias do Quelele, Bairro de Bissau, que diz ter sido “a semente” dos projectos que se seguiram.

Experiências que o levaram a Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Moçambique, Angola e também Timor-Leste. E é com entusiasmo que as recorda: “O que fiz foi entrevistar jovens, não sobre o quotidiano deles, como em de Notícias do Quelele, Bairro de Bissau, mas sobre a sua experiência de vida. Todos tinham problemas, digamos assim. Fui sabendo o que lhes tinha acontecido e depois, com grupos mais ou menos grandes, fazíamos desenhos.”

Quando fala em “problemas”, está a referir-se a casos de “jovens que vivem num orfanato em São Tomé e Príncipe, meninos que moram em bairros populares em Maputo, jovens assassinos de Timor-Leste”. Alain Corbel convidou-os a contar as suas histórias e a ilustrá-las, com diferentes técnicas: “Trabalhei muito com material tridimensional porque me dava jeito. Viajar com material é muito difícil. Então, [basta] ter uma máquina fotográfica e poder trabalhar na Guiné, São Tomé… ali há montes de material no chão: plantas, flores.”

Passou um mês com cada grupo. “Em Timor-Leste e São Tomé, eram grupos pequeninos. Em Moçambique e na Guiné-Bissau, eram enormes, 100 a 200 meninos”, recorda, e quer dizer o nome de todas as organizações com que trabalhou em cada país: “Centro Miguel Magone [Fórum Comunicação e Juventude], em Timor-Leste; AMIC [Associação dos Amigos da Criança] e as escolas populares Aruna Embaló e Penha-Bôr, na Guiné-Bissau; Novo Futuro, em São Tomé; Meninos de Moçambique, em Maputo; Acrides [Associação Crianças Desfavorecidas], em Cabo Verde, e Okitiuka, em Angola.”

Sentiu algum receio antes de iniciar o trabalho com o grupo de Timor-Leste: “São pessoas muito reservadas. Mas quando cheguei ao centro Miguel Magone, em Díli, aquele grupo foi fantástico.” E diz, depois de um sincero e prolongado suspiro: “Eu podia ficar um ano com aquelas pessoas, sem problema. São muito dedicadas, muito concentradas. Depois, faziam coisas tão lindas!”

Por isso, não é de estranhar a ausência de ilustrações do próprio autor: “Para que é que eu ia ilustrar, sabendo que eles faziam para mim e melhor do que eu? Eu tenho o prazer de olhar, simplesmente. Díli tem muitas praias, havia muito lixo e fizeram coisas… Superlindo.”

Diz não ter interesse em fazer o que muitos colegas fazem, como “pôr fotografias no Facebook e colocarem-se sempre à frente”. Não os condena, simplesmente não é a sua prática: “Gosto mesmo é de ver o trabalho dos outros e principalmente, com grupos de 20 jovens todos juntos, e a praia a transformar-se numa galeria de arte…” Novo suspiro.

A vida e a arte em contínuo
Um processo criativo, uma experiência e um tipo de relacionamento que, segundo Corbel, não podem ser vividos noutras geografias. “Como é que eu hei-de explicar isto? Nas nossas vidas, tudo é cortado em pedaços. Estamos aqui. Para irmos comer, temos de ir ao supermercado, chatearmo-nos com dezenas de pessoas que estão lá com os seus carros e mais não sei o quê. Quando vamos para São Tomé, o peixe está ali, o carvão está ali, o barbecue também, e em cinco minutos já temos tudo. Eu tenho sempre saudades disso. Desse mundo onde está tudo conectado.”

No trabalho, sente idêntica ligação: “Quando faço arte com os miúdos, é igual. Eles produzem montes de desenhos e o prazer é intenso e partilhado entre todos. Logo. E vê-se na cara deles que é um prazer partilhar.”

Já na escola, nos Estados Unidos, não é bem assim: “É um processo muito mais demorado, mais longo. Devo ensinar, fazer esboços, pensar no conceito. Depois, eles vão para casa, na semana seguinte vejo os trabalhos. Depois, talvez sejam publicados, colocam no seu blogue, etc. etc. E às vezes nem têm prazer em fazer isso. Vão pensar que as minhas críticas nem servem. O prazer não é tão intenso. Às vezes tenho prazer, mas nem sempre.”

Noutras latitudes, não sente o quotidiano cortado aos pedaços: “É um contínuo, um fluxo, a vida mesmo, é o sangue que está lá presente. E é por causa disso que gosto destas experiências. Gostaria muito de viver em África precisamente porque uma pessoa, nesse tipo de mundo, precisa de ser criativa a todo o momento. Para se safar, é preciso ser-se criativo.”

Noutro tipo de mundo, nem tanto: “No mundo americano, no mundo francês, as pessoas podem esconder-se atrás das leis. Têm um quadro [padrão], podem encaixar-se nesse quadro e a vida vai decorrer assim mais ou menos bem”, diz sem entusiasmo.

Sobre Portugal, para onde gostaria de regressar, “talvez como professor numa escola boa”, diz: “É um país óptimo, mas não dá condições às pessoas que têm talento. Das que eu conheço, escritores, jornalistas, ilustradores, há pessoas que fazem reportagens, filmes que merecem um público maior do que o português, mas nem o facto de os angolanos, moçambicanos, guineenses ou brasileiros falarem português ajuda essas pessoas. É um bocado triste.”

Precisa de poucas coisas para viver, “não tenho carro, não tenho montes de objectos que toda a gente quer, sou uma pessoa muito frugal”, mas “não completamente irresponsável”. Sabe que “não é fácil viver em São Tomé quando se tem de pagar facturas em França”.

Embora se considere preguiçoso, Alain Corbel está quase sempre a trabalhar, só que mais facilmente desenha quando ninguém lhe pede do que quando tem encomendas e prazos para cumprir. Como agora que está cá, nestes dias de Verão: “De vez em quando vou à praia desenhar. Vou com a minha máquina fotográfica, vejo a areia, o mar deixou rastos, mexilhões, pequenas coisas, pedaços de madeira, algas, plásticos, sei lá o quê. Organizo as coisas, tiro fotografias, volto para casa, vejo o que fiz, posso contar pequenas histórias. Não tenho pressão nenhuma, é como uma respiração. E é também como uma continuidade do que fez o mar. Eu gosto dessa ligação de ida e volta”, descreve. E termina: “Não sei explicar, é o meu prazer.” 

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