Historiador Baquero Moreno morre aos 80 anos

Autor de obras de referência sobre o infante D. Pedro e a batalha de Alfarrobeira e de pioneiros estudos sobre a marginalidade na sociedade medieval portuguesa, Humberto Baquero Moreno foi professor catedrático de História Medieval e dirigiu o Arquivo Nacional Torre do Tombo.

Fotogaleria
Fotogaleria

O historiador Humberto Baquero Moreno, ex-director do Arquivo Nacional Torre do Tombo, morreu este domingo no Porto, aos 80 anos, informou a Academia Portuguesa de História. Ensinou História Medieval nas universidades de Lourenço Marques e do Porto, foi um dos fundadores da Universidade Portucalense e dirigiu por duas vezes o Arquivo Distrital do Porto,

 Entre livros e trabalhos publicados em revistas, dicionários ou actas de congressos, deixa uma obra vastíssima, na qual se destaca a sua monumental e inovadora tese de doutoramento, A Batalha de Alfarrobeira. Antecedentes e Significado Histórico (1973), em larga medida responsável pela leitura que a historiografia portuguesa hoje faz da figura do infante D. Pedro, regente de Portugal durante a menoridade do seu sobrinho Afonso V.

“Podia defini-lo como o mestre de muitos mestres”, disse ao PÚBLICO a historiadora Manuela Mendonça, presidente da Academia Portuguesa de História (APH), afirmando que Baquero Moreno “marcou, com a sua orientação, uma geração de grandes professores” hoje no activo.

Um deles, que se considera já da "segunda geração" dos seus discípulos, Luís Carlos Amaral, professor de História Medieval na Faculdade de Letras do Porto, não tem dúvidas em afirmar que a obra de Baquero Moreno veio “mudar a imagem que temos do infante D. Pedro, hoje grandemente desenhada a partir do que ele escreveu”. Uma revisão que veio pôr em causa o retrato que historiadores como Vitorino Magalhães Godinho tinham traçado deste filho de D. João I: o de um D. Pedro que representaria a modernidade, em rota de colisão com o alegado conservadorismo do infante D. Henrique, seu irmão.

“Sem desmerecer a grandeza de ambos, Baquero Moreno veio pôr as coisas no sítio e mostrar que D. Pedro era um homem do seu tempo, com dimensões muito modernas e outras profundamente conservadoras”, diz Luís Carlos Amaral. “Pioneiro numa nova abordagem da história política”, em particular a do tempo de Afonso V, foi também, diz Luís Amaral, “uma das primeiríssimas pessoas na história medieval a empenhar-se na caracterização dos indivíduos e dos seus percursos, naquilo a que tecnicamente se chama prosopografia”.

Um aspecto que também Manuela Mendonça realça: “A sua investigação sobre Alfarrobeira [a batalha que, em 1449, opôs o jovem D. Afonso V ao seu tio D. Pedro, que se retirara para o ducado de Coimbra após ter sido afastado do governo do reino] é um trabalho sempre actual”, diz a presidente da APH, acrescentando que Baquero Moreno “faz um profundíssimo estudo de todas aquelas pessoas, colocando cada um no seu sítio”.

Grande investigador de arquivos nacionais e estrangeiros – Luís Amaral diz que foi na incessante consulta de documentos que o historiador arranjou os problemas de visão que o afectavam –, Baquero Moreno foi também chamado a geri-los. Nomeado director do Arquivo Nacional Torre do Tombo em 1988, foi no seu mandato que se deu a transferência do acervo para o actual edifício, tal como se lhe ficaria depois a dever a reorganização do Arquivo Distrital do Porto nas novas instalações do convento de S. Bento da Vitória.

Ilustrando essa sua paixão pelos arquivos, o historiador Luís Miguel Duarte, porventura o seu principal discípulo, conta que o professor, quando ia de férias para Vilamoura com a mulher, em vez de fazer praia, “metia-se no Arquivo de Loulé”.

Como investigador, Baquero Moreno empenhou-se também em “tratar aspectos da história medieval que eram mais desconhecidos”, diz Manuela Mendonça, lembrando a título de exemplo, o seu interesse pelos coutos de homiziados. “Tratou uma panóplia de temas tão diversificados que não pôde dar seguimento a todas as linhas que abriu, mas foi extremamente pioneiro na história da vida quotidiana e social”, acrescenta Luís Amaral.

Uma das áreas em que Baquero Moreno foi indiscutivelmente pioneiro é o dos “estudos da marginalidade” na sociedade medieval portuguesa, observa Luís Miguel Duarte. Ao fazer recentemente “um balanço bibliográfico dos estudos da marginalidade”, Duarte diz ter constatado que “no início dessas investigações estão muitos trabalhos de Baquero Moreno”. Já em 1975, recorda ainda Duarte, criou na FLUP “uma cadeira de movimentos populares na Idade Média”.

Este interesse de Baquero Moreno pelas minorias, e pelos marginalizados e excluídos na sociedade medieval portuguesa, reflecte-se nos seus trabalhos sobre os judeus ou os mudéjares, mas também em investigações sobre a vagabundagem ou a feitiçaria.

E sem esgotar sequer os seus tópicos mais recorrentes, seria ainda necessário referir o importante impulso que deu ao estudo dos itinerários reais, com obras como Itinerários de El-rei D. Duarte (1433-1438), publicado em 1976, ou Os Itinerários de El-Rei Dom João I (1384-1433), de 1988. Tensões Sociais em Portugal na Idade Média (1975), Marginalidade e Conflitos Sociais em Portugal nos Séculos XIV e XV (1985) ou O Infante D. Pedro, Duque de Coimbra. Itinerários e Ensaios Históricos (1997) são outros títulos fundamentais da sua bibliografia.

Nascido em Lisboa em 1934, Humberto Carlos Baquero Moreno estudou no Instituto Espanhol e licenciou-se depois em Ciências Históricas e Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1961. Durante dois anos deu aulas no Liceu Camões, tendo sido contratado no final de 1963 como professor assistente nos Estudos Gerais Universitários de Moçambique, depois Universidade de Lourenço Marques, onde permaneceria até à descolonização.

Em 1975 tornou-se professor na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), tendo obtido a cátedra de História Medieval em 1979, o mesmo ano em que é pela primeira vez nomeado director do Arquivo Distrital do Porto. Manteve-se na FLUP até se reformar, em 2000, mas paralelamente envolveu-se na fundação da Universidade Portucalense, da qual foi vice-reitor entre 1986 e 1999. Em 1988 é nomeado director do Arquivo Nacional Torre do Tombo e, em 1995, volta a dirigir o Arquivo Distrital do Porto.

O final da sua vida foi ensombrado por uma condenação judicial, da qual tinha recorrido. Juntamente com dois outros directores da Portucalense, foi condenado em 2011 a três anos e meio de prisão, com pena suspensa, e ainda a uma multa pecuniária, por ter pago despesas pessoais com verbas da universidade sem consentimento da assembleia geral da cooperativa proprietária da escola.

“Era um académico brilhante”, que “estava à vontade nas salas de aulas e nos arquivos”, mas que também podia ser “bastante ingénuo”, diz Luís Miguel Duarte, lamentando que o seu antigo professor tenha sido “chamado a várias responsabilidades para as quais não tinha muito jeito”.

Sugerir correcção
Comentar