Há uma luz que se está sempre a apagar

Os diários de Pedro Mexia continuam aliciantes.

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Mexia herdou o pessimismo de Raul Brandão e a tentação do moderno de Ruben A PEDRO CUNHA/ ARQUIVO

Se quiséssemos tentar descobrir uma linhagem para os diários de Pedro Mexia, ela entroncaria algures entre as Memórias de Raul Brandão e o Ruben A de Páginas. E menos, digamos, numa Conta-Corrente de Vergílio Ferreira, ou nos diários de João Bigotte Chorão, com quem Mexia partilha bastante mais do que a inclinação memorialística.

De Raul Brandão, Mexia poderia ter herdado o pessimismo, a subjectividade e o desalinhamento temático, a captura de ângulos subtis e flagrantes, que ressoam ecos de outra coisa qualquer, a circunspecção dos remoques, sempre em tom menor, quase de si para consigo. O traçado, em suma, da melancolia. De Ruben, a tentação do moderno, a multidisciplinaridade, um apego ao gesto clássico com pé bem assente no coevo. Como Brandão muitas vezes fazia, Mexia não data as entradas dos seus diários, submetendo-as antes a categorias temáticas, também impressionistas e volúveis, como se de índices não alfabetizados se tratasse. Mas uma das características diferenciadoras destes diários é, precisamente, a existência de índices, no sentido literal do termo. Como sucedia em Ruben A, esta vertente da escrita de Pedro Mexia surge de forma genologicamente híbrida, entre diarística e memorialismo. Circula da impressão fugaz e ancorada à deriva sem rota, como desta para o aforismo em que é exímio; vai do flagrante breve, elíptico, à nota de leitura por vezes desenvolta e francamente explícita; viaja do cinema à música, com apeadeiros obviamente frequentes na literatura. No sentido lato: ampla e diversamente distribuída por geografias (com a conhecida predominância anglófona), géneros e registos. O que pode querer dizer que, a propósito, por exemplo, de um filme de José Luis Guerín, se aluda a Leopardi. Contrariamente ao que, por longo tempo, tem sido norma, este diário não é um registo de literato. Ou não apenas, porque é óbvio que a literatura — a escrita pelos outros e a que sobre eles se escreve — ocupa um lugar de realce. Mas a par dela, ou talvez em maior extensão, o cinema e a música. Muitas das referências, citações, ou referentes aludidos se relacionam com aquelas artes que surgem não nas orlas do domínio literário, mas à boca de cena — e também o teatro tem sido um domínio importante para Mexia (que o traduziu, escreveu e encenou).

Nem Lei Seca, nem qualquer um dos seus antecedentes — Estado Civil (Tinta-da-China, 2009), Prova de Vida (Tinta-da-China, 2007), Fora do Mundo (Cotovia, 2004) —, são diários em sentido estrito. Não se guiam pelo calendário, mas por uma espécie de cronograma interior. Um relógio biológico não regido pela cronologia, de forma evidente, mas por zonas de atracção e repulsa. Fórmulas como “Waugh, Green e Larkin, os meus ingleses” (p. 282) não são invulgares. Um pouco como sucede, algures, com a mudança automática da hora num computador pessoal: “Chego a casa tarde e o computador mudou sozinho para a hora de Inverno. Sempre tive algumas perplexidades com a mudança da hora, mas ainda mais perplexo fico com isto de as máquinas alterarem o relógio automaticamente (mesmo sabendo que é uma operação básica)” (Estado Civil). Ou como o pessimismo, outra peça fundamental deste quebra-cabeças com que o sujeito a si mesmo se desafia e instiga — “Mas o meu pessimismo é um objecto utilitário. É como um relógio ou uma caneta. Assim que falhar, vai fora. Como nunca falhou, continua ao serviço” (p. 41). O que pode relacionar-se com a abundância de listas, de preferências: na escrita, no ecrã ou na música. Ou de verbetes (outra hipótese para fazer a taxonomia destas entradas de diário) que, por vezes, chegam mesmo a dividir-se em várias partes, como obsessões que não largam o sujeito, ou a sua persona, e o perseguem como objecto fantasmático. E, todavia, é o próprio autor (desta vez, o autor empírico) quem separa as águas e enfileira menos por um eu freudiano do que stendhaliano. Esse Stendhal que, na Vie de Henry Brulard, ironizava com “os ‘eus’ e os ‘mes’” que maçam os leitores, é bom guia para as “recordações” deste “egotista” reticente. Também “o eu é detestável” (p. 357), na fórmula, citada por Pedro Mexia, de Pascal. A análise, no sentido acoplado ao divã, essa, resumir-se-á a um módico de comparências soltas — em que Jung, de resto, parece levar a melhor sobre Freud.

Ao ler este livro, há que ter em conta a questão da sua origem. Os textos que compõem Lei Seca — e aqueles que formaram os anteriores livros — foram, sucessivamente, entradas de blogues que o autor foi suspendendo e que, posteriormente, fixou em livro. Há aqui algo de extremamente moderno, como é óbvio, nesta fugacidade inerente à Internet, mas também qualquer coisa de profundamente canónico. É o livro, objecto clássico, a tomar o lugar do impalpável e do virtual. Por outro lado, os componentes que concorrem para a criação desta obra não são o quotidiano propriamente dito, mas aquilo que dele é escolhido, recortado e filtrado. Daí que Pedro Mexia possa dizer, parafraseando um jornalista inglês, que “ninguém faz a mais pequena ideia” (p. 358). Nesse sentido, a arte de (não) dizer pode consistir neste tipo de corolário: “A minha juventude durou até aos 34 anos, e foi ficando. Porquê esse prolongamento? Coisas escusadas, grotescas” (p. 362). Não é preciso dizer mais. Não é possível, neste confessionalismo sem verdadeira confissão — porque apenas o fundo essencial se divulga, e se deixam vastas camadas por revelar —, sem absolvição possível. Afinal, o confessor e o confessado são o mesmo. E a esperança não está do lado de nenhum deles. Não por acaso, debaixo da entrada Esperança, Mexia escreve uma citação de Kafka: “Há uma esperança infinita, mas não para nós” (p. 308).

Em terra aparentemente de cegos, em que o memorialismo e a diarística são tão incomuns, páginas como as de Lei Seca são leitura aliciante, que consegue ser inesperada. Mesmo que, na verdade, não façamos a mais pequena ideia.

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