Ginsberg e o êxtase sagrado

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"Howl", de Rob Epstein e Jeffrey Friedman, é um filme sobre o modo como o julgamento por obscenidade de um texto emblemático da geração Beat veio levantar questões essenciais para a arte e a sociedade americanas nessa década de prosperidade dos anos 1950.

"Vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura" é uma das mais lendárias frases de abertura da poesia contemporânea. Pertence a "Uivo", de Allen Ginsberg, texto emblemático da geração dos poetas Beat que entronizou Jack Kerouac, escrito em 1955 e levado a julgamento em 1957 pelo promotor público de São Francisco por obscenidade.

"Howl", de Rob Epstein e Jeffrey Friedman (Competição), usa o poema de Ginsberg como ponto de partida para demasiadas coisas ao mesmo tempo, o que o torna num objecto estranho, fascinante híbrido formal que utiliza técnicas de ficção numa abordagem de documentário, baralhando as cartas e as pistas de modo hábil e engenhoso.

Não por acaso, Epstein e Friedman vêm do documentário, e especificamente do documentário de temática gay (ambos assinaram "O Cinema no Armário", Epstein dirigiu igualmente "Os Tempos de Harvey Milk") - mas o que lhes interessa em "Howl" não é a sexualidade mas sim a liberdade de expressão, o modo como o julgamento por obscenidade de "Uivo" veio levantar questões essenciais para a arte e a sociedade americanas nessa década de prosperidade dos anos 1950.

Trata-se da primeira experiência da dupla fora do documentário puro e duro, estruturada em cinco níveis diferentes de realidade. O primeiro, rodado num sumptuoso Tecnicolor trabalhado para aproximar as cores da década de 1950, consiste numa "falsa" entrevista de época de Ginsberg (uma criação espantosa de James Franco), próxima da estética do documentário biográfico tradicional, onde se vem incrustar o segundo nível: "flashbacks" a preto e branco do passado de Ginsberg, imitando a espontaneidade dos filmes caseiros de 16mm. O terceiro nível, rodado a cores como se fosse um melodrama clássico, reconstitui excertos do julgamento com a presença de actores conhecidos (Bob Balaban o juíz, David Strathairn e Jon Hamm os advogados); o quarto, num preto e branco contrastado, traça a criação e a primeira leitura pública de "Uivo", que vemos parcialmente transposto para animação concebida por Eric Drooker.

A ilustração do poema em animação é o quinto nível de "Howl" - e não só o menos interessante como aquele que desequilibra o conjunto. A certa altura, uma das testemunhas de defesa (treat Williams no papel de um académico) aponta ao advogado de acusação que "a poesia não se pode traduzir em prosa - é por isso que é poesia". As imagens de Drooker vêm impor à expressividade "stream-of-consciousness" das frases de Ginsberg uma leitura que as diminui, o que é tanto mais infeliz quanto as sequências em que Franco lê "Uivo", quase em transe místico, capturando na perfeição o "êxtase sagrado" de que o poeta fala, são toda a ilustração de que o poema precisa.

No entanto, isso não minimiza em nada a inteligência e a ousadia formais de "Howl", filme que parece preencher a casa de "ovni" experimental na competição berlinense de 2010 e que, em absoluto, mereceria desde já um lugarzinho no palmarés.

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