Enigmáticos jogos de sombras

Três livros escritos em décadas diferentes, mas já com as características de Modiano bem vincadas. Da busca da identidade como motor narrativo à escrita minuciosa em tom cauteloso

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As personagens modianescas são frágeis e movimentam-se no medo, vão pela cidade dando ao leitor a sensação de que é o vento que as leva

As primeiras publicações em Portugal de obras do francês Patrick Modiano (n. 1945) – distinguido com o Nobel de literatura este ano — datam de finais da década de 1980. Ao todo, e até à data da distinção atribuída pela Academia Sueca, tinham sido publicados em português seis livros. Recentemente, e graças ao prémio, foram reeditados dois deles (Domingos de Agosto e Um Circo que Passa) e ainda publicado um outro romance que estava até agora por traduzir, As Avenidas Periféricas. São três livros escritos em três décadas diferentes, da de 1970 à de 1990, e em todos estão já bem vincadas as características literárias de Modiano, desde a permanente busca da identidade como motor narrativo à escrita minuciosa em tom cauteloso, no fundo aquele conjunto de características que levaram Pierre Assouline a criar o adjectivo “modianesco”.

No seu ritmo lento, Modiano parece indagar em todos os livros o obscuro e o sombrio, procurar uma espécie de “luz incerta das origens”, um espaço onde tudo vacila, algures num passado complexo que — usando uma expressão de Vila-Matas — é nele “muito parecido ao presente”. São personagens silenciosas e misteriosas que se movem num passado que parece por vezes nunca ter existido, como se pode ler, por exemplo, no romance Domingos de Agosto: “Talvez ele tivesse esquecido fragmentos inteiros do passado ou tivesse acabado por se persuadir de que certos acontecimentos, de consequências tão graves para todos nós, nunca tinham ocorrido. Eu tinha uma vontade irresistível de o abanar.”

Em Domingos de Agosto, um dos poucos romances na obra de Modiano cuja acção não tem lugar em Paris (mas em Nice), um homem encontra (talvez por acaso) um outro; fragmentos do passado de ambos afloram de imediato no meio de uma enorme tensão, o que leva um deles a prometer desaparecer. É um passado obscuro, misterioso, em que a história de uma mulher, Sylvia, que foi amante dos dois, se interpõe. (“Os fantasmas não morrem. Há sempre luz nas suas janelas.”) Sete anos antes ela chegara de comboio a Nice com um valioso diamante rosado, o Cruz do Sul, pendurado ao pescoço. O homem esperava-a, e de seguida esconderam-se os dois num quarto que ele alugara numa casa nos arredores. O leitor nunca saberá o porquê de muitas coisas, apenas intuirá. Esta vincada opção de Modiano de não aclarar os mistérios em que as personagens se movem, muitas vezes como se usassem várias máscaras, acaba por os reforçar, por torná-los cada vez mais profundos. Há episódios misteriosos contadas em frases que parecem ser deixadas por acaso, mas que aos poucos começam a levantar suspeitas sobre uma qualquer verdade atroz deixada escondida lá atrás.

O mesmo acontece em As Avenidas Periféricas (originalmente publicado em 1972, o seu terceiro livro e com o qual encerrou a Trilogia da Ocupação). Durante a Segunda Guerra Mundial, numa aldeia nos arredores de Paris, três homens encontram-se amiúde: o director de um jornal parisiense, um antigo legionário que se faz passar por conde, e o pai do narrador (que o abandonou há uma dezena de anos), um enigmático judeu. São os tempos da ocupação alemã, apesar de esta nunca ser mencionada. Na aldeia correm rumores que eles se juntam para organizarem orgias numa das casas que um deles alugou, pois todos os sábados chegam de Paris dezenas de convidados. A verdade nunca a saberemos. O narrador é neste romance a personagem principal, uma personagem em busca de um passado (que se espelha no presente) que o identifique. A história vai progredindo como se o narrador apenas conhecesse pedaços das vidas que narra, mergulha devagar na memória, como se olhasse uma “velha fotografia descoberta por acaso no fundo de uma gaveta e à qual, com cuidado tiramos o pó.” As personagens — à semelhança do que acontece em muitas outras obras de Patrick Modiano — estão envoltas por um ar de ilegitimidade, o que as leva a refugiarem-se umas nas outras. Actuam como se vivessem sempre uma qualquer vida paralela, em que cada acto ou movimento é mais um ponto para a enigmática teia que se vai desenhando diante do leitor.

Em Um Circo que Passa a geografia de Paris é enumerada com uma minúcia quase obsessiva, nomes de ruas, praças, cafés, pequenos hotéis, estações de metro, surgem envoltos numa tristeza melancólica evocada pela nostalgia que atravessa toda a narração a par de amizades equívocas e de amores difíceis. As personagens são dois jovens que de repente se vêem envolvidos num interrogatório policial sobre pessoas com quem alegadamente nunca se cruzaram. Um rapaz conhece uma rapariga enigmática e acompanha-a nas suas deambulações pela cidade, numa cartografia nostálgica e romântica, numa Paris quase intemporal e íntima, em busca de várias personagens não menos enigmáticas e estranhas. “Eu conhecia-a há vinte e quatro horas e não sabia nada dela. Até o seu nome próprio eu tinha sabido por terceiros. Ela não parava num sítio, andava de um lado para o outro como se fugisse de um perigo. Tinha a sensação de a não conseguir deter.”

Numa escrita elegantemente atravessada por velados jogos de sombras, a errância das personagens em busca de um passado, ou de uma identidade perdida algures na cartografia de Paris, sempre etérea e eterna, deixa uma sensação dolorosa de vazio, de solidão e de desenraizamento como uma partida do destino, de laços quebrados e de uma inesperada ausência. “Hoje compreendo melhor aquelas idas e vindas procurando juntar os pedaços dispersos de uma vida.”

As personagens modianescas são frágeis e movimentam-se no medo, vão pela cidade dando ao leitor a sensação de que é o vento que as leva no meio de uma multidão anódina (na qual parecem recear dissolver-se), ou então seguem sozinhas vogando pelas ruas “à semelhança dos pares dos desenhos de Chagal”. Nada em Modiano é o que aparenta ser.


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