Do Mali a Itália, em Sines as tradições soam a presente vital

Durante uma semana, 90 mil pessoas visitaram o Festival Músicas do Mundo em Sines e em Porto Covo. Nas duas últimas noites, reinou o maravilhamento deixado por Toumani e Sidiki Diabaté, e pelo Canzoniere Grecanico Salentino.

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Canzoniere Grecanico Salentino Mário Pires
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Toumani e Sidiki Diabaté conseguiram imprimir a beleza de uma música que embala mas que exige do público uma entrega correspondente Mário Pires
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Toumani e Sidiki Diabaté conseguiram imprimir a beleza de uma música que embala mas que exige do público uma entrega correspondente Mário Pires
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Toumani e Sidiki Diabaté conseguiram imprimir a beleza de uma música que embala mas que exige do público uma entrega correspondente Mário Pires
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Niladri Kumar, virtuoso executante de sitar, numa linha de descendência com origem em Ravi Shankar

Ao contrário do que acontece no universo pop/rock, em que cada novo autor parece convencido e disposto a convencer o mundo de que nunca houve música antes da sua chegada, na(s) música(s) tradicional(is) a crença é a contrária – a de que se está sempre num extremo de uma longa linha histórica.

Em paralelo, também a cultura pop ocidental vive inebriada com a deificação dos intérpretes, rasurando a prática de muitos países africanos e asiáticos em que sobrevive uma relação de mestre e discípulo, e em que a transmissão de conhecimento se faz de uma forma cumulativa, acrescentando o peso de gerações anteriores. Como acontece, por exemplo, com Kayhan Kalhor, exímio tocador de kamancheh, uma das figuras mais admiradas da música persa e com uma carreira internacional notável – diante do seu mestre continua a ouvir que se continuar a estudar e não se perder viciosamente nas armadilhas do destino, talvez venha a vingar.

Na derradeira noite da 17ª edição Festival Músicas do Mundo, no Castelo de Sines, que juntou 90 mil pessoas ao longo da semana, Toumani e Sidiki Diabaté deixaram clara a beleza dessa corrente de transmissão geracional (no caso dos griots do Mali) e de uma relação entre mestre e discípulo em que o primeiro não intimida e o segundo não idolatra. Respectivamente, Toumani e Sidiki representam a 71ª e a 72ª gerações da sua família a construir um reportório para a kora, numa passagem de testemunho que se repete há 700 anos. Mas o que conquista desde logo, com a subida solitária de Sidiki ao palco, é não existir uma gota de postura reverencial do jovem músico do Mali para com o seu pai.

E é curioso que a mestria de ambos no discurso musical derramado sobre as 21 cordas da kora seja tão distinta. Toumani, cuja projecção (sobretudo após a edição dos seus discos em duo com Ali Farka Touré e à frente da Symmetric Orchestra) o levou a gravar com Björk, é dono de um virtuosismo definido por lirismo estarrecedor, com o qual vagueia em torno de simples motivos harmónicos, enquanto Sidiki, cujo sonho é um dia gravar com gente como Jay-Z e Alicia Keys, coloca na kora toda essa gravitação natural em torno de música com uma marca fortemente rítmica. Que este cunho de Sidiki se faça perceber num instrumento que seduz pelas rendilhadas cadeias melódicas, tal se deve à sua espantosa inventividade e à sua capacidade de, tal como os anteriores membros desta linhagem familiar, integrar com naturalidade o seu tempo numa música que arrasta em permanência uma tradição de vários séculos.

Graças a uma troca constante de protagonismos e à adequação especialmente feliz da linguagem mais vigorosa de Sidiki a um cenário de aparência inóspita para a música da dupla (concerto no Castelo de Sines, na última noite, com o recinto esgotado), Toumani e Sidiki conseguiram imprimir a beleza de uma música que embala mas que exige do público uma entrega correspondente (embora fosse preciso fugir de pequenos focos de grupos ruidosos que estariam em Sines da mesma forma que num festival da lampreia). Em encore, depois de uma hora de uma suave hipnose quase exercício de levitação, terminariam com Lampedusa, soberbo lamento dedicado às mais de 300 vidas colhidas pelo Mediterrâneo perto da ilha italiana de Lampedusa, a bordo de uma precária embarcação que levava não apenas centenas de migrantes africanos mas também o peso do seu desespero por uma existência menos dramática.

Concertos alucinados

É impossível não pegar nestas pistas para saltar à noite anterior e àquele que seria o grande concerto de sexta-feira. A encerrar o programa do Castelo, e logo depois de Capicua ter desemalado todo o seu aguerrido hip hop de causas com as habituais eficácia e robustez (falta-lhe um maior brilho instrumental que amplifique mais ainda a sua destreza melódica e lírica), o colectivo italiano Canzoniere Grecanico Salentino havia já trazido para Sines a denúncia de uma humanidade tão distraída com os imperativos económicos que abandonou as pessoas. “Não nos podemos esquecer que somos todos filhos de emigrantes”, avisou Mauro Durante, líder e violinista do Canzoniere, cuja actuação em Sines acontece em plenas comemorações do 40º aniversário do grupo.

Também o Canzoniere, apesar de nítida renovação no tratamento da pizzica, parte da herança familiar legada a Mauro pelo seu pai. Tomando em braços a música e a dança associadas a um ritual de cura de mordidas de tarântula típico da região de Salento (cujo forte hibridismo com a cultura grega ajuda a descodificar o nome do colectivo, patente igualmente na utilização do bouzouki), criam pequenas doses de transe servidas frequentemente por um trio de vozes que canta sempre como se ajudasse e empurrasse uma qualquer função que se desenrola entre os músicos – e que, pontualmente, tem a conformidade visual emprestada pela bailarina Silvia Perrone. É pois uma ritualização festiva, reivindicando a cura dos demónios da contemporaneidade, sob uma percussão cerrada e uma massa sonora criada por violino, acordeão, gaita-de-foles italiana e bouzouki em frequente aceleração alucinante.

Sexta-feira, de resto, seria fértil em concertos mais ou menos alucinados. Niladri Kumar, virtuoso executante de sitar, numa linha de descendência com origem em Ravi Shankar, começaria precisamente por parafrasear o momento impagável do músico em 1971 quando, no Concerto para o Bangladesh, Shankar respondeu à primeira ovação do seu recital com um “se gostaram tanto da afinação, espero que gostem ainda mais do concerto”. Niladri trocou a afinação pelo soundcheck, mas a bênção estava pedida. Menos explosivo do que o víramos há um ano junto à Praia Vasco da Gama, o músico indiano não precisou da mesma fúria exibicionista para ganhar os favores do público. Bastou-lhe entrelaçar os ragas indianos com citações do reportório popular, colocar a assistência a cantar as suas melodias e dosear os momentos de execução desenfreada rumo a instantes apoteóticos. Mestria no sitar, mas também na gestão impecável das dinâmicas do espectáculo.

Antes, também os Flat Earth Society reforçavam a convicção de que o seu regresso ao FMM não admitia contestação. Não é por acaso que iniciam os seus concertos anunciando “Esperamos que gostem desta hora de música tradicional belga” para em 30 segundos reduzirem um primeiro assomo de big band arrumadinha a frangalhos; tal como não é acidental que dediquem um tema “a um dos grandes filósofos mundiais Winnie the Pooh” ou agradeçam em bom português “obrigado e fiambre de peru”. É tudo uma provocação na terra destes senhores, cuja música é uma irrequieta passagem pelo legado de Charles Mingus, por bandas sonoras de filmes de espionagem, pelo jazz mais desbragado ou por rock pouco ortodoxo. Interessa-lhes apenas pulverizar certezas e clichés estilísticos. Nota ainda para a deliciosa apresentação da orquestra informal chinesa Pascals, cujo nome se deverá certamente a um tom lúdico recolhido junto de Pascal Comelade, num espectáculo que se assemelhou em tudo à transposição para palco e para música dos filmes de animação de Hayao Miyazaki.

A música natural

Na jornada derradeira do FMM, e depois do maravilhamento com Toumani e Sidiki, Salif Keita e Orlando Julius cumpririam com o clima de celebração que sempre envolve fogo-de-artifício nas despedidas do Castelo. Mas foi impossível não sentir a noite com uma inclinação descendente a partir do duo maliano. Keita, verdadeira lenda igualmente do Mali, membro da lendária Rail Band, assemelha-se a um Leonard Cohen plantado em terras africanas: um coro feminino que lhe empurra as canções e com o qual dialoga de forma perfeita, um reportório feito de clássicos, um concerto que avança tão escorreito e descomplicado que parece que só podia ser assim. O seu papel parece quase o de se apresentar em palco e pôr a funcionar todas as peças à sua volta. Tudo se encaixa sem aparente esforço, a música surge como emanação natural de um homem que lidera uma banda exemplar com uma sonoridade que não corre riscos e é feita para conquistar massas. E é isso que faz.

Já Orlando Julius mostrar-se-ia aquém da fogosidade jazz/afrobeat/highlife que lhe conhecemos dos discos. Foi o concerto de encerramento do Castelo, mas o casting revelou-se surpreendentemente equívoco. Nada seria mais eloquente do que os minutos que se seguiram ao final da actuação. De luzes acesas, o público já em debandada para a praia onde os Yat-Kha apresentaram as credenciais de banda pioneira no rock de Tuva e Alo Wala não deixou grandes dúvidas quanto ao porquê da sua associação aos Buraka Som Sistema, os últimos resistentes no Castelo recuperavam espontaneamente uma melodia solta que o Canzoniere Grecanico Salentino imprimira nas memórias na noite anterior. Foi o melhor dos elogios ao FMM. Apesar da festa do momento, o festival nunca acaba com o fim dos concertos.

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