Dizer um nome é sempre uma heresia

Uma poesia do rigor e da expressão concisa e medidarar o “som da linguagem”

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Gastão Cruz foi sempre defensor e praticante da “sinceridade das emoções linguísticas" Miguel Manso

Não é sobremaneira audacioso reconhecer na poesia de Gastão Cruz a mudança que se vem notando. É o próprio poeta quem reconhece esse facto, num dos posfácios de Os Poemas (Assírio & Alvim, 2009), embora frise a coerência do todo – “Muito mudou, mas nada essencial mudou. Os elementos biográficos, que sempre lá tinham estado, tornaram-se, talvez com maior frequência, mais explícitos e até mais identificáveis.” Trata-se de uma luta antiga. Quando pela segunda vez reuniu os seus poemas, em Poesia 1961-1981 (1983), uma reflexão do poeta, incluída na badana do livro, informava: “Sempre me considerei um poeta realista.” Nessa ocasião lembrava Gastão Cruz a inserção naquela recolha poética de uma sequência chamada Referentes. Contudo, se a leitura desses poemas permite detectar constantes na obra do poeta – tendências imagéticas e motivações temáticas como a água, o fogo, as, aves, o nome e o corpo, aspectos estilísticos como o hipérbato, a elipse, ou a metáfora por vezes ousada –, o confronto com realizações posteriores denota alterações não negligenciáveis. Neste contexto, é sempre difícil estabelecer um limite convenientemente rigoroso. Mas talvez se possa propor que As Leis do Caos (Assírio & Alvim, 1990) começa a introduzir essa gradual modificação. Desde logo, são mais frequentes os poemas que tomam por título (e foco, embora nem sempre de modo explícito) especificidades da geografia, como Kensington Gardens (I e II), O Corvo de Hyde Park, mas também circunstâncias do quotidiano, presentes, por exemplo, no poema Earl Grey. Uma tendência que os livros seguintes retomariam, embora não de forma linear, nem constante. Se, no entanto, lermos o poema Largo da Graça, de Crateras (Assírio & Alvim, 2000) – “Do miradouro vê-se/ o estuário parado em/ tempos vários” –, perceberemos como a atenção aos referentes passou a ser mais explícita, a sintaxe se libertou de alguma da rarefacção elíptica que a caracterizava, tornando-se mais próxima da fala.

Os quatro primeiros poemas de Óxido situam as suas realizações em meios de transporte público. Na verdade, seria mais justo dizer que se valem desses referentes para outras reflexões poéticas. Nesse aspecto, retomam poemas como Antwerpen Centraal, de As Pedras Negras (Relógio D’Água, 1995) – “Os sons na carruagem// recomeçam o irremediável/ acto da fala” –, Díptico Lituano, de Escarpas (Assírio & Alvim, 2010) – “do autocarro/ vejo-a no longo anoitecer tardio/ dos campos que se alongam entre Kaunas e Vilnius” –, ou Em Outra Idade, de Observação do Verão (Assírio & Alvim, 2011) – “Nas carruagens do metropolitano nem sempre é a visão directa que conta. Vê-se para além dos corpos”. É esse, o caso de Óxido: para lá do corpo concreto, os utentes do comboio, do metro e do avião importam como presenças na “luz do ensaio” (p.9) de um dos poemas. Mesmo as “paragens”, que assinalam o contacto com o concreto que o poema preserva, são representações dos gestos da vida, entendida como simulacro, representação possível de uma peça. A apropriação do léxico teatral é outra das constantes. Aqui, o teatro alegoriza a própria vida. Daí que o último poema de Óxido termine voltando a colher nesse universo temático o seu vocabulário electivo: “ensaio” e “luz” elucidam a filiação, mesmo passando por diversas outras encarnações até lá chegarem.

No já citado primeiro poema, “As carruagens cheias como praças/ que se movem à luz geral do ensaio” (p.9) passam, no último verso, a responder pela fórmula “luz mortal do ensaio”. A “luz geral”, portanto, que se aproxima do âmbito da lexicologia teatral, cede lugar à “luz mortal”, componente de uma esfera universal, a da mortalidade. Mortalidade e moralidade são, aliás, termos não só contíguos na sua fonética, mas também na proximidade que têm, desenvolvidos na poesia de Gastão Cruz. Porque a prática do autor tem sido uma exploração da temática da morte – tida algures como única pelo autor. A interpelação “regressais/ ao presente e chamais-vos ninguém” (p.10) emite uma radiação não apenas hierática (o uso implícito de “vós”), mas também paródica, se repararmos que, um pouco antes, um dos versos do poema embutia a interrogação, suprimida pela afirmação da frase – “romeiros quem sois”. Pelo que a condição passageira dos transeuntes, capturados para o funcionamento do poema, adquire sempre outra feição, que nunca deixará completamente de ser alegórica. Por isso se recupera um mito da tradição literária portuguesa, por isso se deixa que os versos sejam repassados de gravidade e contemplação. Numa sequência como “Humanidade infinda que se move/ num céu sem luz talvez com ar que fora/ da aeronave é um lugar remoto// onde as aves não passam e os ventos/ são o rumo de um ar tornado falso/ por apenas soprar no pensamento” (p.11), as imaginações do poema são um sustentáculo para uma releitura de matérias poéticas pertencentes a um quadro consagrado pela poesia de GC. Aves, ventos, a falsidade do passado, mas também do tempo num sentido mais lato, são algumas das matrizes duradouras deste fazer.

Um dos poemas em que é mais notório esse confronto com a poesia de Gastão Cruz anterior a Óxido é Dizer um Nome – “Não direi o teu nome como outrora pedi/ que não dissesse o meu nome quem tinha/ o poder de o dizer em pleno dia:/ dizer um nome é sempre uma heresia” (p.19). Este dialoga, em regime de paráfrase (nome de um poema de Gastão Cruz, de resto), com um poema de Teoria da Fala (Dom Quixote, 1972) – “Não cantes o meu nome em pleno dia/ não movas os seus ásperos motivos/ sob a luz dolorosa sob o som/ da alegria”. Como se nomear fosse o primeiro passo para a destruição, e proferir o nome, já o início da morte. Uma linha de leitura que, aliás, um outro poema parece corroborar – “Chamar é um erro: que/ nome/ dar a alguém senão ninguém?” (p.25) O isolamento da palavra “nome” e a afirmação que se transforma em interrogação põem a circular a problemática do nome, uma das peças centrais na poesia de Gastão Cruz. “Ninguém tem nome: apenas uma escura/ corda de sons que prende o corpo e deixa/ queimaduras na pele, esse é o preço/ de ser nomeado” (id.). E no lugar do “outro nome” da poesia anterior, afirma-se “a outra pele”. E pode dizer-se que nome e pele se identificam. Como nome e corpo tantas vezes, antes, mutuamente se identificaram nesta poesia.

É possível perceber, na rede apertada dos versos, uma identificação entre a matéria da terra e o corpo, uma implicação recíproca entre os ciclos vitais e a carnalidade da união entre corpos. União, essa, que está destinada a ser cantada na sua efemeridade, conjugada com incidências sombrias e escassas do mundo natural, como as folhas, a sombra, a água – “substituíamos// toda a roupa molhada quando o mar/ as ilhas submergia e refluindo/ descobria lençóis de lava findo/ o exercício de morrer” (p.30). Não será com certeza um grande rasgo interpretativo identificar a finitude do sexo com a mortalidade do existir natural, a união entre movimentos como o das marés com os gestos tentados pelo corpo. Uns e outros limitados pela consideração permanente de um universo transitório. Ao invocar o passado, por exemplo, reconstrói-se “uma alma que era só o corpo ameaçado” (p.39) 

Num momento final de Óxido, Gastão Cruz torna Rimbaud um horizonte de referências e um paradigma dos poemas que formam essa secção. Este gesto sugere um paralelismo com o que o poeta fez em relação à dedicatória de Valéry a Gide em La Jeune Parque. O tópico que essas palavras desenvolvem, o da cessação do exercício poético, podia também fazer pensar na Carta de Lord Chandos – “perdi por completo a faculdade de pensar ou de falar consequentemente sobre o que quer que seja” (Relógio D’Água, 2015). Gastão Cruz explicou, em A Arte dos Versos, de As Leis do Caos, como as palavras de Valéry fora “roendo” a sua memória. É então que recorda um poema de Os Nomes desses Corpos (1974) cujos versos iniciais replicam a dedicatória de Valéry – “Tinha deixado a torpe arte dos versos/ e de novo procuro esse exercício/ de soluços” Em Óxido, importantemente, o Rimbaud em causa é o final. Não o verlainiano, da conturbada apoteose poética e vital, mas o da amputação e da morte. Signo que é de um emudecimento em perspectiva iminente, este Rimbaud é a metáfora da desistência voluntária. Formulações como “viver desune” (p.53), “um forno de cal figura a vida” (p.54), ou a descrição de um “mundo de silêncio coberto” (p.56), constroem o ambiente retórico adequado a esta espécie de “peça de câmara” (expressão não isenta de significação para o tradutor de Strindberg que Gastão Cruz foi) que reencena a quadra final da vida de Rimbaud. Ao concluir a sua encenação, apresenta, no último poema (Existir), a interrogação: “Existimos?” (p.60) Responde-lhe o laconismo afirmativo de uma estrofe que põe sobre o ranger de tábuas uma alegoria da própria vida, da vida que nunca deixou de ser a “vida da poesia” – “Existimos: os mortos são os nossos/ nomes próprios de vivos/ no ensaio buscando a luz mortal que cresce/ enquanto atrás do pano afinal já descido/ o fogo amadurece” (p.60).

Gastão Cruz foi sempre defensor e praticante da “sinceridade das emoções linguísticas”. O poema que aplica esta fórmula chama-se A Vida da Poesia (Campânula, 1978), que foi também título da mais recente recolha crítica do autor. Ela revela dois aspectos fundamentais. Por um lado, uma identificação inflexível entre vivência e escrita poética; de outro, a importância da poesia como artifício da linguagem e da técnica. Óxido lembra-nos, conforme se lia em Crateras (Assírio & Alvim, 2000): “Como um lago o poema/ não repete reflecte”.

 

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