Dar nome às vítimas

Uma reportagem exemplar sobre os portugueses nos campos de concentração

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Patrícia Carvalho centrou a sua atenção na identificação das vítimas e do seu trágico destino Nelson Garrido

Há muitos anos — quase 30 —, quando visitei Dachau pela primeira vez, deparei com a bandeira portuguesa na sala onde se assinalavam os países que tinham nacionais seus entre as vítimas daquele campo de extermínio.

Na altura, Dachau estava ainda longe dos olhares do turismo de massas, era um local inóspito e desolado, onde aos visitantes era facultada uma fotocópia com um mapa do campo, e pouco mais do que isso. A surpresa de ver que existiram portugueses entre as vítimas levou-me a pensar que esse seria um tema para uma grande reportagem jornalística. Foi feita no ano passado, nas páginas deste jornal, e agora, numa versão mais ampla, publicada em livro. 

Jornalista de profissão, Patrícia Carvalho refere, logo nas primeiras linhas, que este não é um livro de História mas uma reportagem sobre os portugueses que estiveram nos campos de concentração. A obra, de facto, não procura enquadrar o destino daqueles homens e daquelas mulheres na perspectiva mais vasta do relacionamento entre o Estado Novo e a Alemanha hitleriana, desenvolvendo um tema que já foi abordado, de modo exaustivo e em grande profundidade, por Irene Pimentel e Cláudia Ninhos emSalazar, Portugal e o Holocausto (2013). Do mesmo modo — e ainda que os títulos das duas obras possam prestar-se a essa confusão —, o livro Portugueses nos Campos de Concentração Nazis, de Patrícia Carvalho, tem um alcance e um propósito muito distintos de Portugueses no Holocausto, de Esther Mucznik. Por vezes, e como é natural, há nomes de vítimas que surgem nestes vários trabalhos, mas a atenção de Patrícia Carvalho centrou-se na identificação de vítimas e no acompanhamento do seu trágico percurso rumo a Auschwitz, Dachau, Buchenwald, Ravensbrück, Bergen-Belsen e outros lugares de morte. Adivinha-se, em cada linha, o esforço e a tenacidade que devem ter sido necessários para localizar os portugueses que passaram pelos campos de concentração, tendo a autora identificado 49 vítimas, muitas das quais sobreviveram. Infelizmente, já não pôde falar directamente com nenhum dos sobreviventes (o último dos quais terá morrido em 2008). Mas não só entrevistou todos os familiares que conseguiu localizar como mergulhou a fundo em diversos arquivos de vários países (em Portugal, talvez merecesse a pena consultar a Torre do Tombo, sobretudo para complementar os elementos colhidos no arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros ou suprir as suas eventuais lacunas). A investigação que fez é de tal forma diligente e minuciosa que dificilmente poderá ser ultrapassada. 

O ângulo de análise incide, como se disse, na trajectória de cada uma das vítimas, onde encontramos um pouco de tudo, desde emigrantes em França que foram subitamente apanhados no turbilhão da guerra a outros que, pelas suas acções de resistência ao nazismo, tiveram como destino “natural” os campos de concentração. A autora tem o cuidado de não proceder a uma “teoria geral”, seja do perfil das vítimas, seja da atitude das autoridades portuguesas. O que lhe interessa é reconstruir caminhos singulares, biografias pretéritas, ainda que o livro contenha, aqui e ali, breves apontamentos que descrevem sumária mas rigorosamente a natureza de cada um dos vários campos de extermínio. A obra é pontuada por magníficas fotografias de Nelson Garrido e apresenta, sem dúvida, o máximo de informação que é possível recolher sobre o que aconteceu, entre outros, ao comunista Luiz Ferreira, a Júlio Laranjo, natural de Alcácer do Sal, à jovem Rachel Basista ou a uma corajosa opositora ao nazismo, Maria Barbosa, hoje sepultada numa pequena localidade no Sudoeste de França, numa campa onde o seu viúvo fez inscrever as dolorosas palavras “antiga deportada”. Por vezes — e este será, porventura, o único defeito a apontar à obra —, Patrícia Carvalho descreve, com excessivo pormenor, o modo como alcançou cada um dos seus biografados, as instituições que contactou ou onde é possível obter informação. No entanto, é isso que nos permite ter uma ideia aproximada da dimensão ciclópica do trabalho levado a cabo para produzir uma reportagem de grande interesse e seriedade, verdadeiramente exemplar. De futuro, e pela qualidade da pesquisa aqui demonstrada, seria interessante que Patrícia Carvalho se debruçasse sobre uma outra realidade: a dos refugiados do Holocausto que chegaram a Portugal e aqui fixaram raízes. Aqui fica o desafio.

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