Dança do vínculo e da perdição

Uma pequena grande introdução à elegância de Saul Bellow.

Foto
Saul Bellow coloca o protagonista de Agarra O Dia numa encruzilhada, sofrendo com o seu lugar no mundo CORBIS/ REUTERS

Pela sua brevidade, Agarra O Dia é talvez a melhor introdução ao universo de personagens em dúvida, esmagadas pelo passado e conscientes da sua limitação no mundo, que povoam os livros deste descendente de russos que escreveu alguns dos mais importantes momentos da literatura do século XX.

Nele encontramos o anti-herói Tommy Wilhelm, um antigo actor de cinema cujo par de filhos vive com a ex-mulher, que abandonou porque queria ser livre; como vingança, ela não lhe dá o divórcio e passa o tempo a estorquir-lhe dinheiro, recusando-se a trabalhar. Agora Wilhelm arrenda um quarto no mesmo hotel onde o seu velho pai vive. 

É exímia a forma como Saul Bellow coloca Wilhelm numa encruzilhada e, através das oscilações do seu humor, das suas recordações e dos seus pensamentos sobre o seu lugar no mundo, torna pungente o seu sofrimento: emprestou as últimas centenas de dólares a um tal Dr Tamkin — suposto psicólogo que perora sobre a humanidade com tiradas entre o profeta de pacotilha e o sábio, e que pode muito bem ser um charlatão — para este investir na bolsa, por si. 

Toda a acção de Agarra O Dia decorre no dia em que Wilhelm tem pagar o quarto e enviar um cheque (pré-datado, visto não ter dinheiro) à ex-mulher; o dia em que, por tudo isto, decide o que fará às acções que comprou com Tamkin (e que têm vindo a cair). O dia em que se decide o seu destino. 

O medo de cair na indigência leva Wilhelm a primeiro rondar o seu pai e depois pedir-lhe de forma humilhante que o ajude, perante a aparente indiferença, ou mesmo o desprezo ostensivo, do velho — este considera que Wilhelm trouxe sobre si próprio o seu infortúnio ao deixar a universidade para ir para a Hollywood, a conselho de um agente, ao abandonar a mulher a troco dessa ideia espúria que é a liberdade, e ao demitir-se da empresa onde trabalhava como vendedor, invocando razões de honra. As frases do pai têm o condão de colocar a memória de Wilhelm — e a sua auto-consciência penosamente auto-depreciativa — em andamento. Recorda como na realidade mentiu ao pai e a si mesmo quanto ao convite de Hollywood, que nunca existiu: à chegada a Los Angeles, o agente que falara com Wilhelm pouco interesse mostrou nele e veio mais tarde a revelar-se um chulo. Wilhelm fez meia-dúzia de aparições no grande ecrã antes de ser condenado ao oblívio, e torna-se claro que abandonou a universidade para não ter de competir com o seu pai, médico. Aliás, o nome Tommy Wilhelm é o seu nome de actor (o seu verdadeiro nome de família é Adler, como o do pai), e isso diz-nos muito sobre o seu modo de actuar: incapaz de lidar com a idade, continua preso àquele sonho de ser actor que tudo redimiria.

Dr Adler, o pai, simboliza aqui a virtude, mas a virtude tem o defeito de não ser condescendente com as fraquezas dos outros — e, como tal, o Dr Adler, que toda a vida lutou pelo seu lugar e dá importância ao que os outros pensam sobre si, não tem tempo nem paciência para desvarios. Criança grande, Wilhelm espera do pai, mais do que dinheiro, uma compreensão que lhe é negada — é condição dos adultos arcarem com os seus problemas. mas Wilhelm não consegue desfazer o seguinte nó lógico: se o pai tem dinheiro e ele está com problemas, porque é que o pai não o ajuda só por um mês? 

O pai, contudo, tomou a decisão de, agora que está perto da morte, não carregar nenhuma cruz e não deixar que os filhos sejam essa cruz. Tenta apresentar o filho a um empresário, laudando as qualidades do primogénito como vendedor, mas a raiva do filho pelo que julga ser a faceta controladora do pai leva-o a destruir a conversa, no decurso da qual o velho o adverte acerca do seu consumo de comprimidos (Wilhelm toma coisas para acalmar e depois outras para se içar). Adler finca o pé na tentativa de convencer Tommy a engolir o orgulho e a pedir de volta o seu emprego como vendedor; e no único esforço que faz para entender o filho pergunta-lhe se tem problemas de raparigas. O filho diz que não, e o pai retorque, com requintes de crueldade, se tem problemas de homens. Tommy vê-se obrigado a explicar — como se fosse um adolescente — que tinha até uma namorada, que se cansou de esperar pelo divórcio.

A elegância de Bellow assenta na precisão rítmica com que nos guia por este tormento de contradições que sobrepovoam Wilhelm — um reactor, um homem sem escoras, que não age com um fito, apenas reage aos outros, perdendo-se no seu rancor, nas suas memórias, nos seus sonhos, na sua tentativa de se reconciliar consigo, a que invariavelmente se seguem momentos de auto-punição mental em que concorda com o pai e se julga um inútil; e na sua tentativa de se reconciliar com o mundo, que invariavelmente acaba com pensamentos entre o patético, o lúcido e o desesperado sobre o Todo. 

Há um momento memorável, já no fim da novela, em que Wilhelm conclui que a humanidade é tão complexa que não se pode pedir um copo de água sem antes pensar em tudo o que aconteceu no mundo até se inventar o copo de água: preso num penhasco, com as mãos agarradas a uma raiz, esgadanha as paredes da existência tentando encontrar conforto, uma explicação para a sua situação ou, mais do que tudo, alguém que lhe passe a mão pela cabeça, como se fora criança, e que lhe diga que tudo vai ficar bem. Porque Wilhelm quer, acima de tudo, a aprovação dos outros, o amparo.

A bem da narrativa, é avisado não revelar se Tamkin desaparece ou não com o dinheiro de Wilhelm; mas é assinalável o génio de Bellow no final: arrastado por uma multidão, Wilhelm dá por si num funeral e finalmente sucumbe aos seus problemas e chora como uma criança. Perante o descontrolo emocional daquele estranho, os presentes tentam adivinhar que relação teria ele com o morto. O olhar de Bellow já se desviou de Wilhelm para se centrar no morto — que só um desconhecido chora. É isto que nos espera a todos.

Sugerir correcção
Comentar