Crónicas do Além

Numa espécie de reinvenção do imaginário popular acerca dos lugares do Além, João de Melo regressa ao romance para nos interrogar

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João de Melo, no seu mais recente romance, interroga-se sobre o que há para além da morte

O que é que há para além da morte, esse “muro intransponível”? Parece ter sido a principal interrogação que o escritor açoriano João de Melo (n. 1949) se colocou ao escrever o seu mais recente romance, Lugar Caído no Crepúsculo (oito anos depois de ter publicado O Mar de Madrid). Dividida em sete partes (seis “cadernos” e um “epílogo”) — algumas delas tituladas com os nomes dos “não-lugares” do Além: O Limbo, O Purgatório, O Paraíso, O Inferno —, esta obra assemelha-se por vezes a estranhos (ou talvez nem tanto, tendo em conta as obras anteriores do autor) exercícios de exegese teológica. Explicando melhor: partindo do problema “insolúvel” da falta de comunicação com Deus, e da sua (de certo modo esperada) ausência nos “não-lugares” do Além, o autor discorre sobre inúmeros problemas teológicos, como por exemplo o da condenação ao Limbo (entretanto extinto por decreto papal) de todos aqueles que viveram antes de Cristo, e que por isso não conheceram a Palavra, ou o dos recém-nascidos que morreram sem serem baptizados. Ao mesmo tempo, e por vezes de maneira bastante pormenorizada (e cansativa), os vários narradores vão descrevendo os “não-lugares” do Além e como as almas por lá se comportam e a que tipo de gente pertenceram em vida na Terra. As que estão condenadas ao Limbo (antecâmara do Paraíso), por exemplo, são “uns seres vibráteis que se limitam a soltar, de vez em quando, bocejos, vagidos, suspiros de sono, decerto inapreensíveis por ouvidos humanos (…). Não lhes ocorrem desejos, nem possuem vontade própria. Só ideias, memórias, tentações banais da sua própria fé, gestos comuns. (…) Com efeito, ninguém sente fome ou sede no Limbo. O cansaço e o sono também não existem.”

As inúmeras e variadas derivas teológicas (umas vezes em jeito de exegese e de procura, outras, as mais interessantes, de desconstrução crítica) ao longo do romance acabam por retirar força à ironia (e à necessária ambiguidade) que o autor pretendia dar-lhe. Mas no meio de tanta teologia podemos encontrar ainda alguns momentos de divertido sarcasmo (de alguma forma a fazerem lembrar o grande romance de João de Melo, O Meu Mundo não É deste Reino), como quando o narrador se refere ao “cantão dos clérigos venais”, no Purgatório: “Quem os não viu e escutou, erguidos no alto dos púlpitos e altares, apregoar a caridadezinha e a tolerância em nome de Deus, e depois acabam por topar com eles rodeados de todos os prazeres da vida, com as panças empinadas a empurrar a moral para os outros, a adorar as riquezas, os fúteis poderes e as piores ou mais secretas imoralidades do mundo? Pagam pelos pecados da luxúria e da hipocrisia.”

A viagem que o leitor faz pelo Além — narrada quase sempre em jeito de crónica que, e à semelhança dos relatos ordenados pelos reis e senhores medievais, várias almas escrevem — começa na cidade de Lisboa: o actor Tomás Mascarenhas morre de repente no meio da rua, envolto por “uma multidão que se apressava a tomar os barcos” ao fim de mais um dia de trabalho. Sentiu que a alma se libertava do seu corpo, voava sozinha no ar, na direcção do sul, e viu-a passar por cima dos grandes braços abertos do Cristo-Rei; ia para longe, entrando “no mistério dessa noite eterna”. Este “Primeiro Caderno” é, sem dúvida, o mais interessante e o mais conseguido de todo o romance, mas logo a sua história se dissipa para dar lugar a uma curta narrativa que nos informa sobre o “peso da alma”. De seguida, já no Limbo, uma alma, a de um tal Erasmo Fernandes, dá conta de como é aquele “não-lugar” de “nem mortos nem vivos” depois de ter morrido, com mais de uma centena de fiéis, no desastre de um avião que seguia a caminho de Alexandria. Aqui, e sem se perceber bem como dadas as suas características, as almas ensaiam uma rebelião (frustrada) contra Deus, e chega-se a pensar num abaixo-assinado para alterar a natureza do Limbo; pelo meio surge Bento XVI e são referidas e discutidas algumas ideias dos doutores da Igreja, de Agostinho a Tomás de Aquino. A viagem prossegue pelos outros “não-lugares” quase sempre no mesmo registo.

O epílogo, e como lhe compete, acaba por dar sentido ao romance ao fechar a narrativa, deixando sem resposta a interrogação principal, pois “Deus carregava sobre si, em estado permanente de culpa, a história universal dos homens. Estes haviam sido abandonados tanto à sua sorte como à fraqueza das suas infâmias e paixões”.

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