Congotronics, electricidade a céu aberto

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Kasai Allstars e Konono Nº1 elevam a música tribal congolesa a fenómeno da world music

A série Congotronics, sinónimo de electrificação de instrumentos precários para se sobreporem ao tráfego de Kinshasa, é-nos explicada pelo seu produtor Vincent Kenis, numa altura em que duas compilações revisitam a matéria dada

Há mais de dez anos que Vincent Kenis desembarcava regularmente no Aeroporto Internacional de N'Djili em Kinshasa. Nas mãos, carregava a bagagem para uma estada de duração incerta; no estômago amarrotado, a ansiedade electrizante de poder finalmente descobrir o rasto de um grupo chamado Konono Nº1, desaparecido de circulação há 20 anos. Mas a esperança começava a ruir. De cada vez, os resultados das suas investigações eram-lhe sempre lembrados num familiar número redondo (que parecia piscar a um ritmo desmaiado na sua despedida de N'Djili): zero. Numa nova investida, Vincent deixou-se conduzir pela mão da filha de Dr. Nico - um dos grandes heróis da guitarra no Congo, sendo o outro Franco - a todos os sítios que, na cabeça dela, poderiam sugerir quaisquer pistas. Uma vez mais, zero. Até que o acaso tratou de produzir os resultados que o planeamento falhara. Ao passearem calmamente por uma dessas grandes avenidas da capital da República Democrática do Congo, a janela aberta de uma qualquer associação deixou escapar para a rua o som dos Konono e a imagem de gente a dançar uma música perdida no tempo como se fosse o sucesso do momento. Vincent tinha descoberto uma espécie de clube de fãs do grupo e jogou a sua cartada desesperada.

O contacto ali estabelecido assegurou-lhe que conseguiria chegar à fala com os Konono. Vincent esperou um telefonema durante o resto da sua estada em Kinshasa, mas foi só depois do regresso a Bruxelas que soube que pouco depois de ter apanhado o avião de volta o grupo voltara a juntar-se. E que, afinal, nunca tinham parado de tocar, simplesmente tinham sido escorraçados para a teia de uma periferia pantanosa e insondável, onde viviam muitos dos praticantes originais do som tradi-moderne de que os Konono eram o diamante mais visível. Diz Vincent que se tratou de uma manobra do autoritarismo de Mobutu, presidente entre 1965 e 1997, derrubado apenas pela morte, invenção de um cancro na próstata. Quando em 71 Mobutu iniciou a sua Campanha pela Autenticidade, recusando todas as referências exteriores e promovendo a supremacia cultural africana, obrigando todos os congoleses a substituírem os nomes europeus por nomes africanos, fazendo do Congo um outro país chamado Zaire, defendeu o aparecimento e a sobrevivência de grupos como os Konono Nº1 e os Kasai Allstars. "Diziam às pessoas para não ouvirem música estrangeira, para que ficassem mais próximas da sua cultura", lembra Kenis. "O que parece uma excelente ideia para um país muito musical e tão grande quanto um continente".

Em 1974, quando se deu o lendário combate de boxe entre George Foreman e Muhammad Ali em Kinshasa, o tradi-moderne era um movimento imenso na capital, com grupos a povoarem cada esquina, como prostitutas numa cidade europeia. Foi esse cenário que o músico sul-africano Hugh Masekela encontrou quando se deslocou para testemunhar o gancho de direita com que Ali deitou Foreman ao tapete. O KO que devolveu Ali ao trono mundial, ao derrotar um adversário mais novo, teria um correspondente inverso na música congolesa. Mobutu deixou de ver nestes grupos de expressão mais tribal um meio para chegar às massas, e o Estado fechou a torneira, escorraçando-os para fora do centro, abrindo caminho para a juventude de grupos trans-étnicos, para a rumba, para o jazz africano, "mais fáceis de usar como meio político, porque se dirigiam ao país como um todo". Estes géneros seriam depois engolidos pela proliferação de música religiosa inspirada pelo gospel americano que tomou conta das ruas até hoje e que a juventude se habituou a encarar como a face da modernidade congolesa. Daí que a sonoridade tradi-moderne dos Congotronics, se mostrada agora aos locais, é descartada com uma sentença: "Ah, isto é música dos anos 70". É música demasiado associada ao passado, a Mobutu e à propaganda para que possa gozar do mesmo sucesso com que chega ao exterior.

Quando Vincent voltou ao Congo em 2002 para gravar os Konono Nº1, estava prestes a dar origem a um dos mais marcantes fenómenos na world music: a série Congotronics. O "tronics", entenda-se, não é tanto alusivo à electrónica quanto à electricidade, uma vez que a força propulsora desta música é o som dos três likembés passados por amplificadores que, por sua vez, medeiam servem de canais de distribuição de energia para os corpos de quem ouve. Segundo se conta, Mingiedi, o fundador do grupo, ter-se-á interessado pela electrificação dos instrumentos para que a música não morresse sob o tráfego incessante de Kinshasa. E, portanto, quando Kenis se encontrou com o grupo em 2002, deu de caras com a mesma música por que se tinha apaixonado 20 anos antes ao ouvir os Konono num programa da rádio France Culture, miraculosamente abrigada de qualquer tentação modernizadora. Afinal, conta o homem que produziu a série Congotronics, Mingiedi pretendia apenas "reproduzir a música tradicional que o seu pai tocara enquanto músico na corte do rei da sua tribo, a 200 quilómetros de Kinshasa".

Problema quase filosófico

A relação de Vincent Kenis com a música congolesa começou no final dos anos 70, quando se envolveu na cena musical cubana em Bruxelas. Dada a escassez de instrumentistas cubanos, os congoleses da ex-colónia belga eram convocados para levar ao palco a sua experiência com rumbas e ritmos latinos. "Eles eram falsos cubanos, tal como eu, e quando nos conhecemos mostraram-me a música deles. Mas a cena da Congotronics é muito diferente da rumba", realça Kenis. Depois da epifania ao ouvir a France Culture servida pelo radialista Bernardo Preton, o mesmo foi ainda responsável pela edição, anos mais tarde, em 1987, da compilação "Zaire: Musiques Urbaines a Kinshasa". "Gostei muito de ele ter lançado a música no formato de cassete e não de LP. A razão era que a maioria das canções era demasiado longa para caber num lado de LP e ele não quis cortar". Pouco depois, seria Vincent a lançar a sua primeira lança em África: a produção de "Toleki Bango", dos Classic Swede Swede, editado em 1994 e que o próprio considera uma espécie de "Congotronics nº0".

A existência de um único estúdio em Kinshasa, pago a peso de ouro e sem capacidade para gravar 12 músicos em simultâneo, e a necessidade de gravar com um baixíssimo orçamento levaram a que Vincent optasse por efectuar as gravações para os quatro volumes da série Congotronics - dois álbuns dos Konono Nº1, um dos Kasai Allstars e uma compilação com mais uns quantos nomes menos conhecidos - ao ar livre. Além disso, a estranheza da situação artificial do estúdio para músicos habituados a tocar a céu aberto não prometia os melhores resultados. "Penso que é melhor eles tocarem num sítio que conhecem, em que dominam a acústica e se sentem mais confortáveis. E os instrumentos de percussão soam sempre melhor ao ar livre". Com os Staff Benda Bilili - grupo que gravita em torno dos Congotronics mas que não integra oficialmente a série -, as gravações foram no jardim zoológico da cidade, sítio onde ensaiavam, tirando proveito da autorização especial conseguida pelo baixista, ex-militar que tratava dos cavalos do Presidente e os levava para ali a pastar.

Actualmente a preparar um encontro em palco entre os músicos congoleses e os ocidentais da música indie ocidental que os homenageiam no disco "Tradi-Mods vs. Rockers", Vincent Kenis tem "um problema quase filosófico" relativamente à ideia: "No Ocidente vivemos num mundo de informação, em que podemos mudar de identidade a toda a hora. Podemos tocar reggae num dia e música indiana no dia seguinte. Identificamo-nos cada vez menos com um certo tipo de música. Enquanto no Congo, nas cidades, a tua identidade é a tua música, a tua identidade é o padrão rítmico específico que tocas no chocalho, uma dança específica, e é complicado para eles perceber uma cultura em que não estamos ligados a algo. Por isso, a música deles com outras pessoas à partida é impossível. A música está ligada tão intimamente à identidade que querem estimar este vínculo, não querem desbaratá-lo. Quando tens 50, 60 ou 70 anos e nunca tentaste fazer algo diferente, não sentes essa necessidade e não queres fazer figura de tolo. Muitos deles, os Konono em particular, têm tocado em todos os grandes festivais, gravaram com a Björk e com o Herbie Hancock, mas continuam a tocar o mesmo estilo que tocavam antes e não querem mudá-lo. E por que haviam de querer?". Até porque o objectivo, repete-se, é apenas o de imitar as cornetas de marfim que tocavam para o rei de uma tribo de que continuamos a não saber o nome.

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